Construção do afeto

Essa história de que a gente já ama a criança mesmo antes de ela chegar é bullshit. Durante a gestação, seja ela biológica ou “do coração”, a gente ama o conceito. A gente quer ter filho, quer ser mãe, quer aumentar a família e fica esperando uma criança para satisfazer os desejos. Não estamos amando uma criança e nem amando a maternidade, estamos amando um sonho, um desejo, uma vontade. Então a(s) criança(s) nasce(m)/ chega(m) e você diz pra ela: “oi, pequeno estranho, então é você que veio realizar meu sonho?”.

Estranho, sim. A criança que chega é bonitinha, fofa, engraçadinha, mas é uma pessoinha estranha, que você não conhece e não faz a menor ideia de como vai ser. Quando meus pequenos estranhos chegaram, eles não me mostraram loucamente o quão lindo é ser mãe. Nada disso. Eles fizeram um cocô fedido (e eu tive que lidar com minha primeira fralda na vida), um deles não me deixou de jeito nenhum escovar os dentes, eles choraram infinitamente sem conseguir me explicar o problema, o outro colocou a mão no vaso de plantas e jogou terra pelo chão da sala toda (e ainda riu quando eu reclamei). Eu também não fiquei tentando mostrar o quão linda é a maternidade: eu fiquei preocupada com a comida que eles iriam comer, com as coisas que não tínhamos em casa e deveríamos ter (tá com febre? kedê termômetro? COMO ASSIM NÃO TEM TERMÔMETRO?), tive nojo de sujar a mão de cocô quando eu ia limpar, fiquei brava com a quantidade de vezes que eles queriam brincar com objetos de decoração em vez de usar os brinquedos, ouvi choro e mais choro sem saber o que fazer.

Porque é isso: ser mãe dá trabalho e não existe manual, nem regra, nem previsão do vai acontecer e tudo o que era fácil na vida (gente, como era fácil apenas fazer jantar e comer antes de ter filhos) começa a virar um inferno processo imenso. Como é que entra amor nessa história toda? Pois é. Não sei.

Eu não sei em que momento comecei a amar tanto. É claro que eu gosto deles desde que chegaram em casa, senão eles não teriam vindo para casa. Sempre gostei muito deles, mas no início o principal sentimento que eu tinha era cuidado. Tinha que cuidar. Tinha que cuidar para que eles não morressem, para que se alimentassem bem, para que não ficassem doentes, para que se recuperassem de doenças, para que não chorassem tanto, para que ficassem felizes, para que aprendessem as coisinhas da idade, para que estivessem limpos, seguros, tranquilos, aquecidos/ fresquinhos, sem fome, sem sede, sem medo etc. etc. etc. Nos meus primeiros meses eu quis desempenhar meu cargo de mãe da melhor forma possível seguindo todo o job description, porque eu tinha sonhado tanto com isso que não poderia ser uma mãe meia boca. Não é que eu estava lá amando. Eu estava lá tentando performar bem e afastando todo e qualquer pensamento do tipo “mano do céu, que foi que eu fiz da minha vida?”.

O afeto veio aos poucos, um pouquinho por dia, até virar esse amor imenso que sinto hoje. Depois de três anos e meio juntos, eu continuo controladora, cuidadora e doida como escrevi acima. Mas hoje não é só isso. Em algum momento eles viraram de verdade a parte mais importante da minha vida. Eles são meus melhores amigos, são as duas pessoinhas que eu conheço melhor nessa vida e são as duas pessoinhas que me conhecem melhor também. Consigo saber o que eles estão sentindo e como vão reagir só de olhar pra eles. Não consigo ficar muito tempo longe deles. Gosto da companhia, do cheirinho, do olhar. Gosto até das bagunças. É claro que existem coisas que não gosto, de verdade, não gosto mesmo: não gosto de ser acordada de madrugada, detesto quando eles falam com a boca cheia de comida e vem aquele monte de pedacinho de comida mastigada na minha cara e na minha roupa (vale também quando escovam os dentes), fico brava quando peço para não fazer alguma coisa e eles ignoraram totalmente e continuam fazendo, não gosto quando ficam bravos comigo e batem porta, me xingam e dizem que não gostam mais de mim. Não gosto de um monte de coisas nessa história toda de maternidade, mas hoje eu sei o que é “amor de mãe”, “amor incondicional”, “maior amor da vida”. Só que só fui experimentar estes sentimentos todos aos poucos, com o tempo, quando o trabalho todo deixou de ser tão dolorido e passei a ver prazer nos cuidados e em ter duas pessoinhas dependendo de mim e me querendo tanto.

Amo meus filhos porque eles são incríveis, eles são as pessoas mais incríveis deste mundo. E amo ser mãe. Não amo ser mãe porque maternidade é uma coisa linda. Maternidade é uma coisa do cão, na verdade. Amo ser mãe porque meus filhos me transformaram em uma versão muito melhor de mim mesma. Sou menos egoísta, menos ambiciosa, menos workaholic, menos consumista, cuido bem mais das minhas atitudes porque quero ser um bom exemplo, me alimento melhor porque não quero que eles consumam bobeiras e me tirei do foco central da minha vida pela primeira vez para dar lugar a outra pessoa.

Ainda bem que essa coisa toda de filho e de ser mãe é pra sempre, é definitivo, não muda, não acaba, faz parte de mim, faz parte deles, porque é bom demais!

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6 pensamentos sobre “Construção do afeto

  1. Jessica disse:

    Oi Ruri, adoro seus textos. Pra mim, a experiência foi um pouco diferente. Na gestação eu me sentia uma incubadora. A ideia de um ser com perninhas e bracinhos crescendo dentro de mim era mais perturbadora do que prazerosa, confesso. Mas mesmo com tantos medos, dores e desconfortos já existia muito amor pelo meu fetinho – é chamava meu bebê de feto, fetinho, girino, semente de azeitona. Pode parecer um pouco romantizado dizer isso, mas assim que meu filho me foi entregue, tive a sensação que já o conhecia há meses, anos, vidas. De estranho não tinha nada, pelo contrário. Quando chegamos em casa com o pacotinho, estranhamente eu já sabia como e o que fazer e as coisas foram dando certo, muitas vezes dando errado também e cá estamos hoje.

  2. Cibele disse:

    Me identifiquei demais! tbm adotei meu filhote e senti exatamente as mesmas coisas!

  3. Annie Baracat disse:

    Ruri, tuas palavras me confortam para o futuro que esta chegando! bjus

  4. vanessa moraes disse:

    Bom dia Ruri. Eu e meu marido estamos na espera por um filho e eu acabei encontrando seu blog e adorei, confesso que imprimi suas historias e estou lendo todas aos poucos, compartilhando com meu marido suas experiencias. Acho que já estou transformando seu blog em um livro. Parabéns pela escrita!

  5. Virgínia disse:

    E olha que a ideia do livro é minha heim… kkkkk… sou fã dessas histórias, não os conheço pessoalmente, mas quando leio suas histórias fico tão envolvida que consigo me sentir parte delas… bjs!

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