101, obatian

101.

obatian, você fez 101 esse ano. eu lamento que tenha vivido trancada em casa vendo quase nada a família desde os 100 anos, mas agradeço que a gente teve chance de fazer um festão de 100 pra você ano passado.

100 anos andando pra lá e pra cá, viajando, nadando e dançando, com os cabelos pretinhos e cozinhando pra família toda aos domingos.

quanta vida, né, obatian? quantas viagens você pode fazer com as amigas velhinhas, que bom que você foi visitar o Japão com 80 anos, depois de 70 anos nessas terras aqui, que bom que depois dos 80 anos você ainda tinha a turma da natação, da ginástica, da igreja (budista) e da dança. que vida linda.

eu só acho mesmo uma pena que eu tenha perdido a chance de conversar com você sobre racismo e machismo enquanto você ouvia e enquanto a língua não era uma barreira entre nós. teria sido uma troca incrível poder te explicar por que eu não alisava o cabelo da minha filha (e nem o meu), que meus filhos são negros, sim (e não mulatos clarinhos) e que tá tudo bem comigo sem ter mais marido (tive vários, não tive?) e vivendo sozinha.

mas ainda assim você foi muito prafrentex dentro do que você viveu. muito mais agilizada que meu avô pra sustentar (financeiramente) e organizar a casa, super independente, super bem informada, super tudo. dona da poha toda. e ainda sua filha foi a única da prole a sair da roça e vir fazer faculdade na capital, e sei que você tava lá empurrando minha mãe pra tudo isso.

de você, eu sempre vou lembrar da bagunça que eu fazia com minha irmã na sua casa (bagunça que nossos 5 filhos continuaram a fazer), dos sukiyakis, dos oniguiris, dos campeonatos de sumô na TV e de quando você me pediu pra viajar de navio e visitar o Rio com 90 anos. que bom que eu te levei.

hoje tiramos uma selfie e você olhou os cabelos brancos e me disse que até os 100 eles eram pretos. que só com 100 anos você ficou velha e parou de tingir. e é assim mesmo que me lembro de você: como alguém que só ficou velhinha quando fez 100 anos.

Diário da qrntn: mãe sonâmbula

eu sou sonâmbula há mil anos.

mas na qrntn está mais intenso. quase que diariamente eu tenho pesadelos com pandemia (nunca lembro exatamente o quê, mas é sempre assustador) e me levanto da cama. às vezes vou na janela, às vezes no banheiro. ultimamente tenho saído do meu quarto.

mas esse dia eu saí do quarto porque precisava evacuar o apartamento (?). abri a porta do meu quarto, abri a porta do quarto das crianças e dei uma semi acordada neles pra gente evacuar o apê. aí percebi que tava sonhando, falei para eles dormirem de novo, voltei pro meu quarto. stress 1.

aí eu voltei a dormir mas não fechei as portas de novo, sei lá por quê. então ernesto entre na história. ele saiu do meu quarto, onde ele dorme, pulou na cama do isaac, depois pulou na cama da ruth, acordou os dois, e me acordou com a bagunça. quando fui até lá, ele está com bolinha na boca achando que era uma ótima hora para brincar. e a ruth ainda deu chorada porque queria que ernesto dormisse na cama dela. stress 2. mas eu não deixei, porque ele ia arrumar uma confusão mais tarde certeza.

enfim. tentei dormir de novo, e acordei com um master barulho. saí correndo, desta vez era real.

o que rolou? depois de acordar duas vezes, isaac voltou a dormir num sono mega agitado, falando, se mexendo, cantando, e ruth não conseguia dormir nem fazê-lo parar. aí ela teve a brilhante ideia de ir dormir no escritório, onde tem uma cama. mas a janela estava aberta, ela tentou fechar a cortina e POFT derrubou o varão na cabeça dela. foi esse o barulho que me acordou. só que quando entrei no quarto, ela ficou com medo de eu estar brava por ter me acordado e começou a chorar e MANO.

tudo culpa de eu ser sonâmbula.

no fim, ela dormiu no escritório em um colchão sem lencóis. isaac seguiu seu sono agitado e eu me odiei profundamente.

tudo culpa de eu ser sonâmbula.

Ensaio sobre um relacionamento abusivo

Eu preciso escrever porque demorei para entender.

Demorei para me re-conhecer, no sentido de me conhecer novamente.

Demorei para aceitar que não tive culpa, nem culpa pelo relacionamento ser tão ruim, nem culpa por não ter percebido logo nos primeiros meses que seria tão ruim.

Eu quero escrever para colocar isso para fora de mim. Para não viver sozinha com essa história. Porque eu acho que foi essa história que fez meu corpo reagir e criar câncer, então eu preciso escrever sobre isso. Porque eu acredito enormemente que meu último relacionamento me fez ter câncer.

A gente nunca se apaixona por um abusador. A gente se apaixona por uma pessoa inteligente, que gosta de música clássica, de artes, que fala muitas línguas porque gosta de ler e de viajar, que faz esportes, que topa aventuras, que quer mostrar coisas novas. A gente se apaixona por alguém que nos acha linda, que traz presentes, que faz favores carinhosos, que trata bem. É por isso que a gente se apaixona. E os abusadores e as pessoas pelas quais nos apaixonamos são as mesmas pessoas, e por isso tudo é tão macabro e tão difícil.

Meu abuso começou com ciúmes. Até então, aos 35 anos, eu nunca tinha lidado com ciúmes, porque meus dois relacionamentos anteriores não tinham ciúmes de nenhuma das partes, era tudo muito tranquilo.

Hoje eu sei bem que ciúmes é algo ruim. Não tem ciúmes bom, não tem ciúmes fofo, não tem carinho em ciúmes. Ciúmes tem duas possibilidades: 1) ou você está perdendo tempo sentindo ciúmes quando não há motivos para sentir, ou 2) ou você está vendo algo real acontecer que te incomoda e você deveria sair da relação. A opção de mudar ou controlar o outro nunca existe. Se a outra pessoa faz algo que você não gosta, você sai.

Relacionamento tem que ser baseado em confiança, carinho e parceria. É só assim para durar e ser a “sorte de um amor tranquilo”. Eu tive dois relacionamentos desse tipo na vida, um que durou uns 4 anos, outro que durou quase 10, com duas pessoas com quem mantenho amizade e carinho até hoje, mas só agora é que eu pude re-confirmar para mim mesma que relacionamento é confiança, carinho e parceria, agora que há mais de dois anos tenho um relacionamento assim novamente, do jeito que acredito.

Eu vivi dois tipos de ciúmes, igualmente destrutivos. Chamam-se “ciúmes do meu passado” e “ciúmes do que pode acontecer”. Ciúmes do passado é, como o próprio nome diz, a pessoa sentir ciúmes de algo que você já fez antes do relacionamento. O que você já fez no passado, que pode ser um passado recente ou distante, se caracteriza por algo que você não pode deixar de fazer, porque você já fez. Não tem undo. Faz, inclusive, parte de quem você é, porque todas as coisas que fazemos nos constrói. É abuso condenar uma pessoa por algo que ela já fez e que não pode mudar. No meu caso, especificamente, não se tratavam de coisas das quais eu me envergonhava ou que eu gostaria de não ter feito, e acho que isso piorava a situação. Eu era abusada por coisas que vivi, das quais eu não me arrependia, com pessoas que continuam frequentando minha vida, e era castigada por isso. Fui castigada em meu relacionamento diversas vezes por coisas que eu tinha feito antes de conhecê-lo. Aí veio junto o ciúmes do que pode acontecer e que, para mim, foi a parte onde mais me senti violentada no relacionamento. Porque enquanto meu passado pelo menos era algo limitado a ele mesmo, as coisas que poderiam acontecer eram infinitas e existiam em todos os lugares.

Existia na carona que peguei para encontrá-lo, quando tive que descer do carro no meio do percurso porque ele queria que eu tivesse ido de ônibus. Existia no pedido para excluir um colega de trabalho das minhas redes sociais porque ele curtia todas as minhas fotos muito rápido, assim que eu postava (nem eu tinha esse controle). Existia no dia em que um amigo querido postou uma matéria com as melhores praias de nudismo na minha página em rede social e fui obrigada a apagar para ninguém ficar achando que eu ficava nua nas praias. Existia na meia dúzia de amigos meus que não deveriam mais ser meus amigos porque o interesse ali era apenas sexo, porque eu me reduzia a apenas um objeto sexual para as pessoas.

Os argumentos, claro, eram manipuladores e não se restringiam a “não quero que você faça isso”. Os argumentos me davam medo. “Você pode morrer pegando uma carona com alguém que dirige mal – imagina ainda se matar seus filhos (uma vez cogitei ir e voltar de um casamento no interior com as crianças de carona com um amigo, mas acabei me vendo coagida a dirigir meu próprio carro com medo de as crianças morrerem por pegarmos carona)”. “As pessoas do trabalho vão te achar pervertida com esses links de praia de nudismo e você pode até ser demitida”. “Você vai almoçar com esse cara hoje, amanhã ele vai sair dizendo para todo mundo que você queria dar para ele e você vai ficar com fama de puta”. Então era assim que eu era abusada. Eu deveria deixar de fazer algo que era absolutamente normal para mim porque ele me amava e me queria muito e, quando este argumento não era suficiente para mim – que nunca relacionei amor com controle – eu passava a receber ameaças sobre minha vida, minha reputação, minha integridade física, coisas que eu nunca tinha pensado mesmo, porque, afinal, eram coisas absolutamente normais para mim.

Às vezes eu enfrentava essa tentativa de dominação. Eu tinha amigos que eram alvo do “não fale mais com ele” que continuei vendo. Mas sempre com medo. Nunca menti ou fiz escondido, mas encontrava meus amigos para almoçar arquitetando como sentar bem longe, como garantir que não iríamos nos esbarrar muito, como ter certeza que ninguém iria nos fotografar em qualquer posição estranha. Depois voltava para casa para encarar a cara de desprezo dele por eu ser alguém incapaz de zelar pela minha própria imagem por aí.

Eu tive força para não me afastar das pessoas que realmente eram meus amigos, ainda bem. Muitos dos caras que eu nunca mais deveria ver ainda estão em minha vida, e me agradeço. Mas deixei de fazer amizades, deixei para trás contatos ainda não tão firmes porque às vezes não valia a energia de brigar tanto em casa. Afinal, eu tinha tudo o que precisava, uma pessoa ótima e apaixonada por mim.

Em algum momento o abuso passou a ser do tipo “você me envergonha”. São várias coisas aí. “Solte o cabelo e arruma um pouco aí pra sair na foto, que assim tá muito feia”. “Não prende seu cabelo pra trás porque sua testa é imensa e fica horrível”. “Não diga para as pessoas do meu trabalho que você votou na Dilma, pega mal no ambiente corporativo”. Uma vez tomei uma bronca porque estava discutindo se era sensato ou não permitir que hotéis e restaurante proíbam crianças com colegas de trekking, e a maioria deles achava absolutamente normal essa proibição e eu estava sendo uma chata em ficar dando argumentos contrários para as pessoas no meio das férias. Outra vez tomei uma bronca que me fez chorar porque entrei em um ônibus com uma mala de viagens, tropecei e tive que me segurar com as duas mãos, deixando a mala cair em cima de uma pessoa. Nas duas situações, não acho que as pessoas terceiras se incomodaram comigo, uma porque eu estava conversando, outra porque tinha me desequilibrado sem querer. Mas ele se envergonhou, se incomodou. Eu já fui empurrada em fila de passaporte na imigração porque estava no celular e a fila andou na minha frente e eu fiquei parada. Já brigamos porque eu fiquei tempo demais na casa de uma amiga em um domingo, sem ter noção do quanto eu a estava incomodando em não me tocar que deveria ir embora. Já brigamos porque chamei o Uber e fui me despedir da minha família (tipo 15 pessoas em um apartamento) e deixei o motorista esperando 5 minutos, uma imensa falta de educação.

Meu abuso passou também para “toda culpa da minha infelicidade é sua”. Problemas no trabalho? Culpa minha. O quadro caiu da parede? Culpa minha. Uma vez uma viagem com o pai dele não rolou porque o pai não quis ir (na verdade ele não quis correr atrás de um passaporte vencido de uma hora pra outra), culpa de quem? Né?

Em geral, eu chorava muito nessas brigas, doía a alma. Não era tanto a briga em si, mas a discrepância entre me sentir desrespeitada e violada de um lado, e de ter alguém que deveria me dar amor tão pouco interessado em não me magoar de outro. E eu só consegui agora, praticamente nesse mês, a entender a diferença entre brigar com um namorado e sofrer um abuso dentro de um relacionamento: são as intenções da pessoa em te magoar e/ ou em não querer te tirar do sofrimento.

Eu brigo de vez em quando com meu namorado atual, assim como briguei com todas as pessoas com quem me relacionei porque acontece. Mas tem uma diferença essencial na forma como sou tratada hoje (que provavelmente era forma como eu era tratada nos relacionamentos anteriores) que é: meu namorado não quer me magoar. Quando ele percebe que me magoou, e geralmente ele magoa sem querer, ele pára tudo o que está acontecendo para eu não sofrer e NUNCA MAIS faz a mesma coisa que me magoa. Mas, nossa, Ruri, não é óbvio que seja assim em um relacionamento? Pois é, não. Eu vivi alguns anos passando pelo mesmo tipo de briga e pelo mesmo tipo de mágoa, repetindo, gritando, implorando para ser ouvida nas coisas que me magoavam, mas elas voltavam a acontecer do mesmo jeito. E só hoje, quase três anos depois do livramento, com mais de dois anos em um relacionamento bacana, que consegui ter clareza da diferença entre alguém que simplesmente partiu meu coração e por isso terminamos e alguém que tentou me destruir por dentro. Só hoje que consegui olhar para trás e ver que, quando reclamo de alguma coisa para meu atual namorado, ele me olha e me escuta e nos acertamos. Só hoje consegui resgatar as tantas vezes que reclamei de alguma coisa no relacionamento anterior e recebi um olhar de desprezo e uma bufada. Só hoje eu percebi que a questão não era brigar, mas o prazer que existia em algum lugar ali em fazer e deixar o outro sofrer. E isso nunca poderia ser amor, porque amor é querer deixar a outra pessoa feliz, e passa por tentar entender o que faz essa pessoa infeliz também.

Mas também, em determinado ponto do relacionamento, eu virei a pessoa chata, insuportável, difícil. “Nossa como você é difícil”. “Nossa que escolha errada eu fiz quando decidi ficar com você”. “Nossa eu já fiz/ faço tudo isso, isso e aquilo por você e você ainda quer mais XPTO?”. Na época, isso me abalava, e eu tinha que fazer esforços sobrenaturais para não ser chata, insuportável e difícil, porque eu não queria ser essa pessoa que ninguém quer por perto, mas óbvio que era um ciclo de sofrimento, de auto-estima lá embaixo, de mais estímulos para sofrer. É um ciclo de tratar mal alguém, de repetir coisas que já sabe que magoa e de achar ruim que a pessoa que você trata mal ainda por cima é chata, insuportável, difícil. Eu não sou chata, insuportável, difícil, nunca fui. Mas me achei e me senti assim por muitos meses, e me vi diversas vezes tentando ser legal com alguém que não era legal comigo porque eu não queria que a culpa fosse minha de destruir um relacionamento que tinha tudo para ser legal. É incoerente para caramba, mas foi assim que vivi durante muito tempo: tentando consertar uma situação toda errada porque a culpa de ela ser tão errada era toda minha.

E aí, por algum motivo inexplicável da vida, uma hora eu me tornei a pessoa ciumenta, controladora e louca do relacionamento. Ser chamada de controladora e louca passou por cima de tudo o que eu achava razoável, porque eu sabia bem que nunca tinha sentido ciúmes de ninguém, mas eu também achava que pudesse estar mesmo enlouquecendo e precisava melhorar. O meu abuso teve a fase de fazer eu sentir ciúmes, porque se todos os argumentos para me podar não foram suficientes todos esses anos, nada mais justo que eu sentisse ciúmes também para sentir na pele o que eu fazia ele passar. E aí eu me vi mesmo em situações que nem eu sabia o que estava fazendo, se estava com ciúmes besta ou com a real desconfiança que ele fazia coisas que eu não gostaria que fizesse, que são justamente as duas formas para não se viver um relacionamento. Mas eu estava lá, eu era a vilã agora, eu que deveria melhorar meu comportamento para voltar a ser merecedora do amor daquele homem. As fases que vieram eram sempre muito contraditórias, porque eu nunca conseguia adivinhar. Se mandasse mensagem para saber dele, eu era controladora. Se eu não percebesse há quantas horas ele não dava notícias e ia dormir sem nem ver a hora que ele chegou, eu era fria e não me importava. Se eu chamasse para jantar fora, estava querendo ocupar todas as horas dele, se eu fosse ao cinema com uma amiga, estava abandonando ele sozinho ele. Eu nunca adivinhava a coisa certa a se fazer obviamente.

E só hoje eu me dei conta de como é bom estar com alguém para quem posso mandar uma mensagem ou ligar a hora que me der vontade sem ter medo do que ele vai pensar, e como é bom também às vezes passar horas sem me comunicar porque estou enrolada e depois quando nos falamos tá tudo bem. Como é bom que a gente faça tantos programas separados quanto programas juntos, e eu não tenho medo dele. Não tenho medo de tomar bronca, de cara feia, de mandar mensagem, de não mandar mensagem, de perguntar o que ele fez e onde está e de responder onde estou. Amor é assim, leve. Amor não tem medo.

Amor não é alguém que acha que não precisa te dizer onde vai e com quem vai, porque se você não acredita em ciúmes, então você é obrigada a aceitar não ser tratada com respeito. Amor não é receber olhares de desprezo e ainda ter que rebolar para conseguir reverter esse olhar em algo carinhoso. Amor é confiança, carinho e parceria. Amor, porra, é amor!

Eu saí destruída desse relacionamento e meu corpo somatizou tudo o que eu passei. Eu tive câncer por causa deste relacionamento. Os meses que vieram depois da separação foram desesperadores, porque eu me vi desempregada, destruída, com câncer de mama e com uma cereja no bolo: eu ainda estava como dependente no plano de saúde do abusador, porque ainda não tinha tido tempo de mudar todos os documentos, contas, planos e afins. Passei meses me vendo coagida a agradecer eternamente pela oportunidade de me tratar, a me desculpar semanalmente pelo trabalho que dava a infinidade de documentos, pedidos de reembolsos e contatos do plano de saúde, e a manter uma relação cordial com ele, que estava me fazendo a maior bondade que alguém poderia ter me feito durante o câncer. Recebi várias vezes ameaças de me tirar o plano de saúde, que depois se concretizaram, e me vi sozinha, com câncer, desempregada e sem plano de saúde, gastanto muito dinheiro com advogados para resolver essa situação. Mas o fato é que, mesmo depois de ter conseguido sair do relacionamento, eu ainda me vi em mais uns meses de abuso que questões burocráticas: o fato de ainda não ter mudado o plano de saúde quando descobri o câncer me deixou amarrada à coação, ao assédio, e à tortura psicológica um tempo mais. E foi só quando ele me tirou o plano de saúde que eu consegui me ver livre de verdade, porque eu não me sentia mais obrigada a tomar chá de boldo na casa de alguém só pra tentar ser educada, manja?

Hoje estou pronta para falar que eu sei que não tive culpa. Hoje sei que pode acontecer com qualquer uma, e aprendi a não julgar a dificuldade que as mulheres têm de sair de relacionamentos abusivos. A teoria toda sobre abusos não cobre toda a prática, não cobre a dependência que criamos, a confusão entre alguém que amamos e que nos faz mal, a dificuldade que é recuperar a auto-estima para ter claro que não somos as vilãs e que tem um mundo lindo lá fora nos esperando de braços abertos. A parte mais cruel do relacionamento abusivo é ele te fazer mal a ponto de você acreditar que você é tão ruim que o máximo que pode merecer na vida é continuar no relacionamento abusivo que te destrói. E, falo por experiência própria, é bem difícil romper esse ciclo e sair dele.

Eu me perdoo por ter me culpado, me perdoo por ter me deixado viver nesse horror, porque eu fiz o melhor que eu sabia fazer por mim mesma na época. Se você está passando por isso, esse post é também para você. Para dizer que nos encontraremos aqui fora, que você é uma pessoa maravilhosa e que vai ficar tudo bem.

Ao meu namorado atual, eu não tenho que te agradecer, mas eu agradeço ao universo a sorte que tive em poder voltar a viver livre, leve, sem ciúmes, sem neuras, só com briguinhas bobas, com muito amor, muito pedal, muitas aventuras. Obrigada, universo, pela combinação de companheirismo e liberdade que pude voltar a ter na vida.

 

Relato de prova – desafio KOM

Resolvi escrever meu relato de prova aqui. Eu sei que criei esse blog para falar sobre adoção e maternidade, mas ele é também meu espaço de registros da vida, que eu gosto de reler às vezes, e que eu também espero que Isaac e Ruth possam ler um dia. Tipo “livro de memórias da mamae”.

E ontem foi um dia muito especial.

Eu sempre dei a devida atenção para atividades físicas. Nunca fui amante de educação física na escola, seguia apenas as aulinhas de natação e ballet que mamãe pagava, mas na vida adulta entendi bem a importância de “pagar uma academia e frequentá-la”. Sempre fiz alguma coisa, mesmo nas épocas de consultoriavidaloka, trabalhando 14-16h por dia, eu dava um jeito de ir na academia umas 3 vezes na semana. E fazia um pouco de corrida de rua, tentei voltar a nadar há uns 5 anos, pedalava aos finais de semana em trilhas, sempre gostei de trekking. Enfim, sempre mexia o corpo.

Mas o câncer me trouxe uma relação muito diferente de tudo isso, porque me colocou de frente a uma série de dores reais: medo de morrer, perda de força e de movimentos, baixa imunidade, fraqueza, dores físicas persistentes, mil incertezas, uma lista de coisas que eu poderia fazer para ser feliz mesmo que não pudesse contar tanto com meu corpo. Porque imagina a cabeça de alguém que tem uma bucket list cheia de trilhas, travessias, escaladas e montanhas ter que pensar em uma nova lista sem essas coisas.

Eu me saí bem disso. Eu passei por mastectomia bilaterial com reconstrução imediata, sofri muito, tive muita paciência e passou. E a vontade de fazer um triathlon veio aí nessa confusão, veio de uma vontade imensa de poder usar meu corpo para fazer coisas que gosto, e eu gostava de correr, nadar e pedalar, e eu também queria fazer algo MUITO LEGAL e minha primeira prova foi muito legal.

Aí na lista começaram a aparecer outras coisas que podem ser muito legais, tipo: meia maratona (já me inscrevi), travessia longa em mar aberto (checked), prova de ciclismo. Aí entra o KOM e meu relato da prova, porque eu não quero esquecer.

Primeiro, quero dizer que essa não é uma prova de iniciante, porque é uma altimetria filha-da-puta e, embora eu tenha treinado muito nas ladeiras da USP, mano do céu. Eu tinha estudado a altimetria da prova pela Internet antes e no dia anterior fui conhecer o percurso de carro. Eu estava com um carro automático e cansei dos 60km só de dirigir em tanto sobe-desce-curvapraesquerda-curvapradireita. O percurso é uma montanha-russa. Foi bom ter conhecido antes da prova, mas eu passei mal fisicamente de nervoso na véspera e na manhã da prova. Dormi enjoada, acordei com diarréia, sofri pra tomar o café da manhã, saí da pousada pedalando até a largada já achando que eu poderia morrer nesse percurso de 3km até chegar lá.

Porque se tem uma característica minha é ser cagona. Sou muito. Jamais vou pular de nada alto, tipo pára-quedas ou bungee jump ou asa delta, tenho medo de mergulhar e ficar sem ar no cilindro, fiz duas provas de natação em mar e tive uns pânicos de vou-morrer-afogada sem que nada estivesse acontecendo. No ciclismo, tenho dois medos específicos: cagaço de descida, de não frear, principalmente de passar reto numa curva e cair num barranco, cagaço de estar clipada numa subida e perder a potência pra pedalar e não conseguir desclipar e cair madura no chão (nunca passei reto numa curva na descida, mas essa segunda situação já aconteceu). E o desafio KOM era basicamente subir pracariao, logo, me estribuchando, e descer pracaraio, me cagando.

A prova começa em uma descida, de paralelepípedos, que depois vira uma via inclinada cheia de curvas para terminar numa curva fechadaça e esburacada. E eu não consegui largar na muvuca, porque também estava com medo de, sei lá, encostar na bike de alguém e todo mundo ir pro chão. Então eu larguei por último, desci freando me cagando pelos paralelepípedos e pela ladeira e cheguei lá embaixo já sabendo que eu nunca mais ia alcançar ninguém (porque eu freio na descida, mas não é que eu disparo na subida, então não tem como). Fui sozinha bem pra trás.

Mas os primeiros 10-12km de prova eu tava drogada de adrenalina e gel de carboidrato e fui bem. Tipo vi média de 21km/h no relógio e fiquei pensando “nossa continuando assim dá pra fechar em 3h, que coisa linda”. Ã-hã. Km 14 eu fiz a primeira besteira da prova. Eu tava sozinha, entendiada, com calor, pensando em caipirinha (que minha cabeça boicotadora fica me mandando parar de coisa loka e ir comer gordice com caipirinha), e empurrei a bike em uma subida. Frouxice minha. Não era inclinada, não era longa, eu nem tava cansada, eu tava sendo frouxa. Mas o problema de ser frouxa uma vez é que abre caminho pra ser frouxa o tempo e lá fui eu mais pra frente, km18-19 talvez empurrar a bike novamente. Nessa hora encontrei meu pelotão, dois caras que estavam acabados e também empurrando a bike. Viramos amigos, fomos um cortando o vento pro outro enquanto o outro empurrava (piada besta). Na verdade, subimos na bike e fomos pedalando a 5km/h.

Lá pelo km 22 o Jorge falou assim “gente, sigam aí, pra mim não dá mais, vou voltar”. E aí me caiu a ficha de que não, Jorge, como assim, faltam 8km pra chegar em Campos Novos, a gente TEM QUE ir até lá. Fiquei falando, não, Jorge, pera, vamos pensar melhor nisso, e também não me tente, porque se você voltar vou querer ir atrás. Vamos, só 8km, vamos, lá a gente chama um Uber. E aí eu tirei uma força de não sei onde para não descer mais da poha da bicicleta e ficar motivando Jorge, porque se ele voltasse eu ia voltar, e eu não queria voltar, eu queria pelo menos fazer metade da prova e chegar na cidadezinha. E nós chegamos.

Campos Novos fica no meio de um abismo, é a pior descida do mundo pra chegar até lá. Você entra na cidade parecendo que mergulhou de cabeça de um arranha-céu e não consegue parar a bicicleta até chegar na parte mais baixa da cidade, depois da igreja, depois da praça, e eu cheguei lá agradecendo estar viva e intacta. Tomamos água e isotônico, eu e o Jorge, e começamos a subida de volta. A subida que também era a pior parte, porque ter que sair do precipício é pior que cair dentro dele, certo? O Jorge desistiu uns 50m depois e entrou no carro de apoio, que estava na cidade para fechar a prova, esperando os últimos atletas a fazerem a volta. Éramos 4: o outro amigo que saiu na frente, um senhor de mtb que pedalou ao meu lado a subida-filha-da-mãe, e Jorge no carro de apoio. No fim da subida filha-da-mãe, o pneu do senhor da mtb furou, o pessoal tentou ajudar, mas não rolou e ele teve que voltar no carro também.

Eu fiz a volta toda com o carro de apoio da minha roda, fechando a prova, seguido de uma ambulância do SUS atrás. 30 km de volta e meu maior orgulho nessa prova foi que em nenhum momento eu pensei em subir no furgão (ou na ambulância). Eu não sou boa de dominar minha cabeça, então a superação para mim foi essa. Porque o carro estava bem atrás de mim, tava muito fácil sentar lá e voltar tudo de boa, porque eu já sabia que ia fazer a prova em mais de 4h (e o limite para completar eram 4h, então eu não sabia nem se iam me dar a medalha). Faltando 15km pra completar, num calor desgraçado e ainda muito morro pela frente, o outro atleta desistiu e voltou de carro. E eu continuei na estrada, pedalando como ainda aguentava, empurrando de vez em quando, me soltando nas descidas pra descansar. Empurrei, sim, mas fui eu que empurrei, ninguém tocou na minha bike. Empurrar bike na ladeira cansada com sol também é sofrido, então eu tentei pedalar o que dava. Não tinha mais perna, mas eu consegui sustentar na minha cabeça que eu ia chegar com as minhas pernas em Cunha, nem que fosse engatinhando. E eu fui. No caminho, ainda cruzei com mais dois atletas que não conseguiram completar de bike, mas fui seguindo em frente e cheguei de volta, passei a linha de chegada pedalando.

Quase desabei quando completei, cheguei a perder o ar, senti cãimbra, me acabei de chorar de emoção. Foi muito legal. Cruzei a linha ouvindo as buzinas do carro de apoio que me escoltou 30km com os outros atletas dentro torcendo para eu não desistir, a sirene da ambulância que vinha atrás caso eu morresse e as sirenes da polícia que esperavam a última a chegar pra poder liberar a via. Foi muito emocionante. Meu namorado filmou essa chegada e é o melhor filme que tenho fazendo esporte.

4h17. Média de 14km/h. Máxima de 48,5, e várias subidas loucas que penei. Mas esses números não são o que importam. O que eu me orgulho mais é de ter conseguido não desistir. Porque não é fácil não desistir com tudo bem fácil para desistir, tipo um carro confortável com rack de teto e água bem geladinha bem atrás de você. Mas subir não me passou pela cabeça e me amo muito por isso.

Jorge, obrigada por terminar a ida, porque foi por você que cheguei em Campos Novos. Pessoal da bicicletaria que estava no carro de apoio: OBRIGADA. Obrigada por estarem ali, mas obrigada por em nenhum momento me sugerirem desistir, obrigada por andar a 4km/h atrás de mim enquanto eu penava nas ladeiras sem perguntar se eu tava loka de fazer isso, obrigada pela paciência de fazer um percurso de 30km em mais de 2h.

 

 

O limbo da espera

Câncer machuca o corpo e a alma, e deixa marcas. São muitos processos difíceis. E um deles se chama “exames de controle”.

Fazer exames é chato para qualquer pessoa, mas acho que é pior para pacientes oncológicos ou com alguma doença crônica. A gente passa por mais exames e exames detalhados. E toda e qualquer coisinha que aparece é motivo para cara de preocupação dos médicos, e repete exame, e faz mais exames, e tem que ter certeza de tudo.

Meus últimos exames deram caca. Não foi uma super caca, mas aquele brilho estranho na ressonância, aí repete, aí faz mais exames, aí fica todo mundo com aquela cara X, e você já pensando “caraca lá vou eu estragar o Natal da família” e vem aquela recomendação que você NÃO QUER que é “melhor fazer uma biópsia pra tirar essa dúvida”. Biópsia é o exame decisivo, que pode ter dizer “você tem câncer”. Fora que além de tudo machuca, fura, deixa roxo, deixa edema, e pra quem já sentiu tanta dor na vida e já ficou tanto tempo impedida de fazer coisas, é um pé no saco por isso também.

Entre a biópsia e o resultado, você começa a viver em um limbo. Eu, ao longo de todas essas experiências dolorosas da vida, aprendi a controlar bem o emocional e não choro, não aborreço ninguém, durmo bem, não tenho crises de ansiedade. A verdade é que o limbo é um lugar confortável, porque enquanto você está no limbo você não tem câncer, então você pode trabalhar, sair pra jantar, fazer esportes, tudo bonitinho. Problema é que o final do limbo é um muro alto e você não enxerga o que vem depois. Isso é muito sofrido para mim.

Durante meu limbo esperando resultado da biópsia, as pessoas estavam começando um ano novo. Eu nunca fui de resoluções de ano novo, mas queria fazer planos. Tava pensando no triathlon olímpico e no 70.3 (será?), na prova de ciclismo que já paguei, nos ingressos, nas viagens. Tinha amigos já querendo programar férias e viagens, e eu não sabia como ia estar minha saúde até lá. Eu fui cortar o cabelo durante o limbo e, embora tenha conseguido espantar bem rápido este pensamento, me perguntei se valia a pena gastar dinheiro com corte pra depois o cabelo cair todo. Essa falta de visão e de planos para a vida é um desafio. Será que vou conseguir trabalhar, pagar as contas? E os prazos do doutorado, vou furar todos? Vou estar viva no dia x que meu ex marido quer trocar para eu ficar com as crianças? Mas ao mesmo tempo eu não estava com pressa de chegar ao final do limbo, porque, como já disse, o limbo é confortável, e depois dele pode vir algo mais chato.

Comecei o ano de forma muito emocionante. A Ruth também ficou bem doente no começo do ano, então já gastei toda minha cota de médicos, hospital, exames e antibióticos. Espero que isso não seja uma palhinha do que vem por aí, e tenha sido apenas duas semanas de teste emocional para garantir que yoga e meditação funcionam mesmo.

PORQUE NÃO ERA CÂNCER. FELIZ 2019, RURI!

Grateful for 2018

Não quero nem sou de fazer drama, mas a verdade é que os últimos anos da minha vida foram bem difíceis. Depois de 2012, a coisa toda desandou. Em 2012 comecei este blog porque iniciei o processo de adoção. Fiz um projeto de dois meses na África do Sul, que foi uma das experiências mais maravilhosas da vida, as crianças chegaram, tirei uma licença maternidade que foi incrível para nós, recebi um aumento considerável no salário no final do ano, 2012 foi um ano bom.

Depois fudeu.

Em 2013 eu voltei ao trabalho e descobri a caca que é conciliar carreira e maternidade. E me separei do meu primeiro marido, que foi sofrido e minha vida ficou muito difícil. Eu também fiz uma escolha errada ao trocar de emprego, e fui parar em um lugar que não gostei.

Em 2014, ainda vivendo a crise competitiva entre o que eu fazia pior, a carreira ou a maternidade, eu fui demitida. A demissão teve um lado bom de ganhar uma graninha extra, porque eu já estava engatilhada em outro emprego, mas teve o lado horroroso de se sentir descartada, colocada na rua, foi ruim.

Em 2015, eu pedi demissão para iniciar um sabático e pensar o que fazer da vida, depois de mais uns meses em outro emprego que também não me fazia feliz. Neste ano eu casei de novo, a decisão mais errada da vida. No mês 3 eu já estava me questionando que merda eu tinha feito, e iniciava aí a série de meses intermináveis e infelizes de brigas, machismo, divisões desiguais do trabalho doméstico, ciúmes, essas porcarias todas.

Em 2016 eu me separei pela segunda vez. Embora aí sim eu tenha feito uma decisão acertada, bem mais acertada que me separar do primeiro marido, foi um período ruim, sempre é duro. Eu estava então sozinha, desempregada (porque a gente só chama sabático de sabático quando estamos bem, quando estamos na merda se chama desemprego mesmo), com dois filhos pequenos, vários boletos pra pagar, e ainda numa briga imensa por causa de pensão com meu primeiro ex marido. Mas a cereja do bolo ainda estava chegando: o primeiro câncer de mama.

Em 2017 as coisas estavam querendo melhorar, eu estava feliz, tranquila, trabalhando em um lugar onde eu consigo ser mãe também, super amiga e resolvida com meu primeiro ex marido – pai dos meus flhos, tinha começado o tão sonhado doutorado e estava namorando o cara perfeito (segue aqui comigo até hoje). Mas veio o segundo câncer de mama, a mastectomia bilaterial, dores dos infernos que me perseguiram por quase um ano, medos, dependência dos outros para fazer coisas simples.

Mas 2018 foi o ano. O ano produtivo, o ano feliz, o ano que tem essa lista aí de coisas que fazem meu coração pular de alegria:

  • Publiquei 4 artigos em congressos, 3 deles internacionais
  • Escrevi com colegas um capítulo de livro (já aprovado) para uma editora americana
  • Submeti 1 artigo de revista (ainda em análise)
  • Tirei A na última disciplina que faltava para completar os créditos do doutorado (nas outras também tirei A em tudo porque sou nerd)
  • Fiz dois projetos grandes de consultoria e dei um monte de treinamentos corporativos
  • Fiz uma parte grande da pesquisa de campo para o doutorado
  • Fiz duas corridas de rua de 5k
  • Fiz um short triathlon, que concorre aí como a coisa mais legal que fiz no ano
  • Não fiz a Fuga das Ilhas porque a prova foi cancelada, mas eu treinei tanto no mar e na represa que vou considerar na lista de coisas legais de 2018 também
  • Voei 99 vezes
  • Fiz quatro viagens maravilhosas de férias (NY com o namorado, Floripa com as crianças, trilha de Salkantay-Peru sozinha, travessia do Vale do Pati com o namorado)
  • Subi outras 3 montanhas (Pico da Bandeira, Pedra Grande de Atibaia e Pico da Onça)
  • Comprei um bicicleta nova porque queria fazer triathlon e ela já tem muitos km rodados (com RP de 80Km em um dia)
  • Voltei a fazer tudo o que a mastectomia dificultou: pilates, yoga, corrida, bike e natação
  • Isaac e Ruth passaram de ano, alfabetizados e fazendo contas com as 4 operações (foi um processo bem difícil esse negócio de criança que tem prova na escola, meldels)
  • Fiz muitos rolês de final de semana em Cunha, Campos do Jordão, Paraty, Brasília, Ilha Comprida, Inhotim, Santo Antônio do Pinhal, São Francisco Xavier, além dos bate-e-volta para treinar no Guarujá, Santos e Romeiros
  • Consegui fazer Ernesto parar de latir feito louco quando saímos de casa e até fui elogiada pelos vizinhos pelo silêncio
  • Não fiz as unhas nem escova o ano todo e me sinto linda
  • Completei  dois anos do melhor relacionamento que já tive

Eu aceito o que vier em 2019, mas eu vou fazer a minha parte para ter mais anos como 2018 na minha vida. Obrigada, 2018. Pode vir, 2019.

Sobre não querer (mais) filhos

Uma das coisas que aprendi com o câncer é que a quimioterapia pode afetar a fertilidade das mulheres. Eu não sabia disso. O câncer me incomodou com diversas questões, mas fertilidade não era exatamente uma questão para mim, por motivos bem simples e visíveis: eu tenho dois filhos. Eu já sou mãe, tenho duas crianças, é tudo o que eu poderia querer para exercer minha maternidade.

O médico tinha que me informar e me questionar a respeito, então passou um tempo me explicando os impactos da quimio, a possibilidade de se congelar óvulos, a importância de refletir bem sobre este assunto. Ele não me conhece, achei muito atencioso e gentil e respondi dizendo que não, obrigada, eu não vou engravidar, não vou congelar nenhum óvulo, nada disso. Na verdade, se <bate bem forte na madeira> eu engravidar sem querer, eu não vou ter o bebê de jeito nenhum e isso já é uma decisão.

Mas achei impressionante a quantidade de pessoas que quer confirmar isto comigo. “Tem certeza?”. “Já pensou bem?”. “Você ainda tem alguns anos, se quiser”. Gente, eu posso ter “alguns anos”, mas não tenho um potencial pai para outro filho, nem dinheiro, nem espaço, nem energia, nem vontade. Nenhuma vontade. Ainda mais que eu tive câncer duas vezes, gente. Tudo o que eu quero é superar isso e voltar ao que eu chamava de “vida normal”, com o Isaac e a Ruth, e só.

Como eu sinto esta pressão toda quando digo que não quero um terceiro filho (T-E-R-C-E-I-R-O), estou escrevendo isso para me solidarizar com as outras mulheres na faixa dos 30 e alguns aos que também sofrem esta pressão por não terem filhos ainda ou por não estarem planejando filhos. Sintam-se abraçadas. Sintam-se seguras para não quererem. Maternidade é linda e transformadora, mas não é obrigatória. E maternidade também muitas vezes é um saco. E, não importa se é linda ou é um saco, ninguém precisa querer. Vocês serão felizes sem filhos. Ou serão bem felizes se resolverem ser filhos mais tarde, quando vocês quiserem. E não é da conta de ninguém.

E para o resto das pessoas, peloamor, aprendam a ouvir das mulheres “não quero filhos” ou “não quero mais filhos” e apenas responder “ah, legal”. Não perguntem se elas têm certeza, como assim, já pensou bem, ainda tem uns anos pela frente. Please. Não.

 

Mãe que namora

“Mas como assim você namora há um ano e oito meses e ainda não apresentou o namorado para as crianças?”

Pois é. Estou namorando há um ano e oito meses sem que meus filhos saibam disso. Levo uma vida dupla, literalmente. Como eles não acessam redes sociais, não vão descobrir sozinhos, e também espero que ninguém conte para eles antes de eu resolver contar (faço briefing com todos os meus amigos constantemente sobre isso). Eles na verdade o conhecem, sim, como um amigo da mamãe. Mas não o amigo da mamãe que aparece em todos os eventos e dorme em casa misteriosamente. Eles se viram algumas poucas vezes nestes meses todos, sem nenhuma intimidade muito grande. Tão pouco que nem daria para desconfiar.

Antes de explicar o “como assim”, vou dedicar um parágrafo para dizer que eu namoro uma pessoa maravilhosa e que a decisão de não apresentá-lo para meus filhos não tem nada a ver com ele. Meu namorado é a melhor pessoa que poderia ter aparecido para mim. Eu poderia contar várias coisas sobre ele, sobre a relação, sobre afinidades, sobre a conexão que temos, mas vou escolher uma: ele ficou ao meu lado durante o câncer. Ele não apenas comprou o pacote assustador da mãe solteira de duas crianças pequenas e um cachorro com dois divórcios no currículo, nenhum emprego fixo e um câncer recém-operado, como abraçou também a recidiva, a cirurgia, o tratamento e tudo mais. (Quando alguém me fala que namora uma mãe solteira e leva junto o pacote completo, saiba que pacote completo é aqui). Voltando. Eu recebi um segundo diagnóstico de câncer, optei por operar as duas mamas e foi b.e.m.d.i.f.í.c.i.l. Tá sendo ainda. Mas ele veio, eu nunca pedi e ele nunca cogitou não estar aqui para mim. Quando fiz a cirurgia e as crianças foram passar um tempão com o pai até que eu fosse capaz de cuidar delas de novo, meu namorado fechou o apartamento dele, se mudou para o meu e viveu comigo a fase mais punk da minha vida e da vida dele. Tudo, gente: me ajudar a levantar e deitar, cozinhar, lavar, limpar, me trocar, fazer supermercado, ver o cachorro, tudo. Eu nem sei que outra pessoa teria sido enfermeira, babá, cozinheira, faxineira, arrumadeira desse jeito para mim. Eu nem sabia que um dia alguém iria me amar tanto a ponto de parar tudo para cuidar de mim. Eu nem sabia, aliás, que o câncer poderia trazer lembranças tão boas para mim, que é lembrar dessa época (tirando a dor toda. e a limitação de movimentos. e o soutien pós-cirúrgico bege). Enfim, meu namorado é incrível, continua sendo.

Acontece que minha principal missão nessa vida é cuidar dos dois monstros que adotei. E Isaac e Ruth já passaram por muitas rupturas, mais que eu gostaria que eles tivessem passado. Tiveram os cuidados da mãe biológica por alguns meses até se separarem dela para serem abrigados. Viveram no abrigo quase um ano até que papai e mamãe os trouxessem para casa. Aí nos separamos. Aí entrei em um outro relacionamento, e me separei de novo. Aí tive câncer duas vezes, e por duas vezes eles foram viver mais com o papai que comigo, porque eu não estava boa. Mudaram de casa comigo, estão na terceira escola da vidinha deles. Eu não quero causar mais nenhuma grande mudança na vida deles, não se eu puder evitar.

Eu tenho uma bronca muito grande de mim mesma pelo meu segundo casamento. Eu apresentei este namorado para meus filhos muito rápido por N motivos. Entre eles, eu achava que eu tinha que incluir as crianças na minha vida e deixá-los fazer parte de coisas que me faziam feliz. Eu também achava realmente f-o-d-a fazer as coisas sozinha com os dois e queria alguém que me desse uma mão – ou as duas mãos – na hora de passear, comer fora e viajar. Eu queria um apoio moral na maternidade solo, pra dizer bem a verdade. No fundo, eu ainda vivia o luto do sonho interrompido da família margarina e queria casar de novo, ter tudo aquilo que eu tinha perdido de novo. Só que deu tudo bem errado, o relacionamento deixou um saldo bem negativo para minha vida e é uma pessoa que não quero ver nunca mais, de quem agradeço muito por ter me separado exatamente na época em que resolvi me separar. Mas ele se separou de mim e nunca mais quis saber das minhas crianças (nunca um telefonema, um convite para cinema ou um presentinho em data especial, nada) e isso me deixa com sentimentos confusos: por um lado acho bom porque eu mesma não queria que eles mantivessem contato nenhum; por outro lado me culpo muito por ter feito meus filhos viverem tanto tempo ao lado de alguém que simplesmente não quis saber mais deles. A bronca que eu tenho de mim mesma é não ter evitado, de não ter feito diferente, de ter deixado meus pequenos se apagarem a alguém ruim. Mas ruim para mim, talvez não para eles. Aí que está a questão.

Hoje eu passei a ver meus filhos como pessoas independentes de mim, que não necessariamente precisam se relacionar com quem me relaciono. Meu namorado é uma pessoa extraordinária, mas é meu namorado, meu relacionamento, que pode terminar, ou mudar, ou brigar, ou sei lá, e eu quero que isso seja uma coisa minha, não das crianças. Eles poderiam se dar bem, mas também poderiam não se dar bem. Contar que a mãe está namorando não é apenas nice to know, mas implica criar um relacionamento entre eles, que é algo que não acho que eles precisam. Eles precisam se preocupar com a vidinha deles, com a família e amigos que já têm, com a escola e os cursos, e não precisam se preocupar em entrar junto comigo no meu relacionamento. Não vejo nenhuma necessidade nisso. E eu também quero namorar sabendo que se acabar eu não vou fazer outro relacionamento dos meus filhos se romper. Quero a liberdade de namorar sem que eles saibam junto com a liberdade de repente não namorar mais.

Então, sim, eu vou com calma daqui pra frente e não me vejo contando que namoro para eles nos próximos anos. Não tem por quê. Minha vida com as crianças é só nossa: a rotina é de nós três, os finais de semana são nossos, todos os compromissos deles, os passeios, nossas férias, somos só nós três. Quando eles vão para casa do pai, eu vou viver a vida dupla, que inclui o namorado, mas também inclui o emprego em outra cidade e minha vida de adulta. E a gente concilia tudo tão bem nessa vida dupla que não tenho por que mexer. Sei que Isaac e Ruth serão mais felizes assim. E quanto ao namoro, às vezes dá saudades, mas matar saudades é muito bom, certo?

 

Mãe que viaja

Estou dentro do meu 44o voo em 2018 e resolvi fazer uma homenagem neste post às viagens a trabalho. Mesmo estando cansadona, porque um projeto fora de São Paulo mais três férias só esse ano (porque, né, fiz uma cirurgia gigantesca ano passado e estou recuperando um tempo perdido) e mais alguns finais de semana fugindo de São Paulo não me deixaram dormir uma semana seguida na minha cama há muitos meses, vou reconhecer que estou feliz. Mesmo que eu tenha começado o dia de hoje do jeito que vou contar no próximo parágrafo, estou feliz.

Hoje eu acordei e achei o quarto claro demais, e olhei as horas. SEIS E TRINTA E OITO. Em geral, às 6h38 eu já estou no térreo esperando o taxi para deixar as crianças na escola e ir pro aeroporto, mas eu estava descabelada, de pijama, tentando entender se o despertador não tocou às 5h ou se eu tinha desligado sem querer e pensando como faz quando perde a hora do voo. Abri o aplicativo, não consegui resolver, liguei na LATAM. Aí a moça disse que eu poderia pegar um próximo voo em até três horas sem custo adicional e por um segundo eu relaxei e pensei que dane-se eu ia voar às 10h. Mas no segundo seguinte eu resolvi que ia tentar e fiz a maior proeza da vida: estava às 7h40 na frente do portão de embarque. Em 1h02 eu: tomei uma ducha gelada pra lavar o rosto e disfarçar o cabelo (nem deu tempo de esquentar), vesti a roupa e escovei os dentes, enfiei a maquiagem dentro da mochila para cuidar disso no aeroporto, acordei minhas crianças e enfiei os dois num taxi sem nem fazer xixi ou tomar café da manhã, tadinhos, enfrentei um mega trânsito de segunda, desci na passarela do outro lado da avenida e corri para o embarque e deu tempo. Isaac e Ruth foram muito legais e espero que estejam super lindos me esperando em casa com a babá daqui a pouco. Mas eu passei o dia ainda em pânico, pensando se não tinha esquecido nada pra trás e se os dois ficariam bem o dia inteiro na escola depois de terem sido literalmente jogados lá. Vou saber logo mais.

Antes de ter filhos, viajar a trabalho era uma coisa simples e banal, porque eu ia e voltava para onde eu queria na hora em que queria e só avisava a família, super fácil. Fiz projeto na África do Sul, passei meses morando em Campinas durante a semana, passei vários dias e semanas em eventos fora, e tudo bem. Depois que eu virei mamãe, e principalmente depois que virei mamãe solteira, o bicho começou a pegar. Eu mal conseguia conciliar um trabalho full-time em um escritório dentro de São Paulo, que dirá os projetos em Alphaville, Campinas, Rio, Vitória ou Brasília. Na época, eu tinha uma babá mensalista que trabalhava em casa até 20h. Mas em geral a gente sai de São Paulo e não consegue voltar para casa antes das 20h. E meus filhos vão dormir às 20h e eu sempre achei que o colocar para dormir era coisa minha, que eu queria fazer todos os dias. Então eu vivia estressada quando tinha que sair de São Paulo, muitas vezes deixei de ir porque não consegui uma folguista ou as horas extras da babá, e isso pegava mal e cheguei a sair de um emprego porque eu não dava conta de viajar. E também porque eu queria estar em casa todos os dias para ficar com meus pequenos antes de eles irem dormir e isso era prioridade para mim. E foi assim durante os três anos seguintes, quando repensei carreira, trabalho e a vida e estive bem disponível para eles todos o tempo que eles precisaram.

Há seis meses atrás eu quis fazer um projeto em Belo Horizonte. Comecei com um “bico”, uma participação pontual, depois tive oportunidade de continuar de uma forma mais fixa e eu quis. Até então tinha feito umas três ou quatro viagens a trabalho como freelancer, bem espaçadas, e há uns seis meses viajo semanalmente para BH. Duas coisas me deixam feliz: uma é o projeto em si, porque gosto do desafio, gosto do meu time, gosto do cliente, gosto do que estou fazendo, a outra é a felicidade que é poder viajar a trabalho sem pânicos ou questões existenciais.

Isaac e Ruth dormem na casa do pai todas as quartas e quintas-feiras há quase dois anos e esses são os dias da semana em que sou consultora, que não tenho hora para sair do trabalho e que posso viajar a trabalho sem me preocupar em estar em dívida com as crianças. Tirando o dia de hoje que deu tudo errado, em geral eu voo depois de deixa-los na escola alimentados, limpos e bem vestidos e volto para São Paulo quinta à noite, quando eles ainda estão com o pai. Acontece, também como hoje, de eventualmente eu precisar ir em uma segunda-feira, que é um dia em que eu teria que pegar os dois na escola e eu tenho babá folguista para estas ocasiões. Meu sentimento hoje é que é muito diferente deixar dois bebês com uma babá que duas crianças de 7 anos. Eles conseguem entender o que está acontecendo, consigo combinar com eles tudo o que iremos fazer e não me sinto culpada se vez ou outra volto mais tarde para casa. Mesmo que eles já estejam dormindo, não me sinto mais culpada. É muito diferente e me sinto MEGA feliz por agora conciliar um projeto fora de São Paulo com a maternidade.

É claro que ficar em São Paulo é mais legal. Porque não é só a maternidade, abro mão de muita coisa para viajar a trabalho toda semana. São dois dias que a academia fica atrapalhada, que não vejo meu namorado e meus amigos em dias que eu poderia jantar fora, que faço e desfaço mala e que tenho que deixar o cachorro com a cuidadora (e pagar por isso). Mas pensar que há quatro anos isso parecia ser impossível na vida me faz sentir bem de estar rolando agora. E por isso essa homenagem.

(Vou postar esse texto sem revisão porque está na hora do pouso e minha meta era escrever algo em 50 minutos rs)

 

Milagre

Quero só fazer um registro rápido.

Dia 05/05/18 foi a primeira reunião de pais na escola, agora que eles estão no segundo ano do fundamental. E eu estava lá sentada na carteira junto com o papai quando ouvi a professora falando para todos os pais e mães presentes:

– … sempre que sentirem necessidade vocês podem marcar conversas individuais comigo. Eu não chamei todos os pais ainda para conversas individuais porque nem todas as crianças estão com alguma questão.

MANO. DO. CÉU.

Eu não tinha me ligado que chegamos em maio sem ser chamados uma única vez na escola. EM MAIO. Há seis anos nós éramos chamados todos os meses (ou todas as quinzenas?), ou por causa do Isaac, ou por causa da Ruth, e de repente chegamos em maio!

É um milagre ou é muito orgulho ou é aquela luz no fim do túnel que realmente existe?