Esta é minha conversa imaginária com culegas que detestam crianças e desejam viver longe delas. Antes, quero dizer que talvez eu já tenha sido um ser desses. Já tive dessas de querer tirar férias longe de crianças, de querer morar em um prédio onde havia poucas crianças, de detestar crianças em aviões, de escolher mesas bem longe de famílias com crianças em restaurantes. Eu entendo que vocês sejam assim, mas desaprovo. Sinto vergonha desse sentimento em relação às crianças. Mas, da mesma forma que muita gente me disse que nunca tinha pensado sobre o lápis “cor de pele” porque não tem um filho negro, talvez muita gente não tenha pensado no respeito com as crianças porque não convive com elas. Então, vamos lá.
Para começar: criança é uma pessoa em formação, que está aprendendo coisas todos os dias, o tempo todo, constantemente. A criança leva de 18 a 20 anos para se tornar um adulto. Crianças pequenas não têm a mesma maturidade e nenhuma condição para se comportar como um adulto. Elas precisam de tempo, paciência e muito treino. Existem alguns comportamentos que são absolutamente normais para uma criança pequena: 1) elas choram quando estão descontentes, e pode ser fome, cansaço, tédio, pode ser porque perderam um brinquedo, porque queriam fazer algo que não é possível fazer naquele momento, porque estão com saudades da mãe. Elas choram e precisam ser acolhidas – e, não, caladas; 2) elas não conseguem se concentrar tanto tempo como um adulto, seja quando estão à mesa em um restaurante, quando vão ao cinema, quando estão com os pais na casa de amigos. É normal que se entediem, que fiquem impacientes, que queiram se movimentar, mudar de lugar ou de atividade; 3) elas são curiosas, e que bom que são curiosas. Isso significa que vão mexer nas coisas, que vão querer andar pelos lugares, que vão falar com estranhos e que vão fazer um milhão de perguntas; 4) elas se distraem e esquecem o que foi combinado, e é papel dos adultos lembrar as regras com carinho e quantas vezes forem necessárias, como por exemplo, que não podem mexer nas obras em um museu ou que precisam falar baixo.
“Mas eu não tenho nada a ver com isso, porque o filho não é meu”. Primeiro, se o filho não é seu, tenha a certeza que existe alguém que cuida desta criança e que não quer vê-la fazendo o que quiser. Ninguém leva a criança para almoçar fora e come tranquilamente enquanto a criança grita ou joga comida no chão como se fosse algo tão natural a ponto de não intervir. Não. Existe alguém que está cuidando e orientando a criança. Ninguém está dizendo que a responsabilidade é sua e que você deveria se levantar e fazer alguma coisa. Aliás, se não for fazer com boa vontade e com carinho, por favor, não faça nada. Não fazer nada significa inclusive não bufar ou reclamar que a criança está incomodando. Porque não existe nada mais desagradável do que estar tentando confortar um filho que está berrando e esperneando e sentir aqueles olhares de ódio atrás de você te dizendo “faz logo essa criança calar a boca!”. Porque, sim, é o que estou tentando fazer, mas não por sua causa, por causa dela, porque quero que ela se acalme e fique bem. O que você tem a ver com isso? Como você faz parte da sociedade, é sua obrigação tolerar e respeitar a situação.
“Ah, mas como assim? Eu não tenho nada a ver com crianças”. Tem, sim, senhor. Ser criança faz parte do ciclo da vida. As crianças fazem parte da sociedade, assim como os idosos, deficientes, negros, palmeirenses, pobres e qualquer outro grupo que você tente discriminar. Você já foi uma criança um dia, você já sentiu na pele o que é ser uma criança. Se teve sua infância respeitada, espero que repasse isto a outras crianças, mesmo que não sejam seus filhos. Se não teve sua infância respeitada, eu sinto mesmo de verdade e espero que você não deseje o mesmo sofrimento para outras crianças.
“Que p é essa de respeitar a infância?”. A criança não deve crescer isolada só porque não se comporta como um adulto se comporta ou como um adulto espera que ela se comporte. Pelo contrário. É vivendo as situações do dia a dia – fazendo supermercado com a mãe, visitando parentes e amigos, frequentando hotéis, acompanhando os pais em alguns compromissos profissionais – que ela vai entender e aprender. Respeitar a infância é entender que a criança tem limites diferentes dos adultos – e diferentes de outras crianças também – e ajudá-la e apoiá-la, mas nunca escondê-la. Da mesma forma, você deve respeitar os pais, mães e cuidadores, que não nasceram para se esconder de você porque têm filhos.
“Então você acha normal que mães e pais levem seus filhos para qualquer lugar”. Sim, desde que este lugar seja apropriado para crianças. Veja bem, com muita atenção, que quando digo “apropriado”, estou pensando no bem estar da criança. Existem lugares que podem colocar as crianças em risco (alguns exemplos: assistir filmes “de adultos”, com violência ou sexo, casas noturnas, onde serão expostas à música alta, cigarros e bebidas). Agora, não vejo por que hotéis, restaurantes e aviões – para citar apenas alguns exemplos – não seriam adequados. Então, sim, elas podem frequentar esses lugares.
“Mas crianças incomodam”. Qualquer pessoa intolerante como você vai se incomodar com os outros, não apenas com as crianças. Você provavelmente vai se incomodar se o cara na poltrona ao lado estiver lendo Carta Capital, se o rapaz da mesa ao lado gritar “gol do Corinthians” ou se um velhinho demorar muito para manobrar o carro no estacionamento. Não é a criança que está incomodando, é você que está sendo intolerante. Até porque, te juro: quando uma criança começa a chorar, gritar, espernear ou qualquer coisa assim, ela não está tentando te incomodar. Ela está pedindo ajuda. E ela não está pedindo ajuda para você. Ela está pedindo ajuda para a pessoa que está cuidando dela.
“Mas crianças fazem muito barulho”. Quando você estava batendo panelas e falando palavrões para a presidenta, gritando gol e soltando fogos de artifício ou fazendo aquele churrasco com os bródis, você estava fazendo o quê? Please, né? Em uma das minhas últimas viagens, fiz um trekking de quase 100 quilômetros até o topo do Monte Roraima, passeio não recomendado para crianças por causa do esforço físico. Lá em cima só tinha adultos e você não imagina a capacidade que eles tinham de fazer barulho enquanto eu estava tentando ouvir passarinhos ou curtir um pôr-do-sol em silêncio. Barulho é do ser humano, não apenas das crianças. A diferença – grande diferença – é que o adulto já é capaz de entender que seu barulho interfere no silêncio do outro e tem a capacidade de controlar o seu barulho. As crianças, como disse no início, estão A-P-R-E-N-D-E-N-D-O.
“Mas quando eu vou a um restaurante chique, quero ter um momento romântico, em paz”. E você quer tirar o direito de mães e pais de frequentar o seu restaurante chique só porque você quer que seja assim? Ou você quer que mães e pais não andem mais de avião? Eu tenho muitos momentos românticos com meu marido, junto com as crianças, porque a gente se ama e pronto. Nenhuma criança na mesa ao lado vai acabar com seu romance. Engraçado que se busco no Google “hotéis proibidos para crianças” recebo milhões de indicações. Mas obviamente não existem hotéis onde sejam proibidos negros ou deficientes. Então discriminar abertamente a família com crianças é ok? Você entra tranquilamente em um restaurante com uma placa na porta dizendo “não aceitamos crianças”, né? Como você se sentiria se estivesse escrito “não aceitamos deficientes mentais”?
“Mas não dá para deixar a criança com outra pessoa?”. A gente que é mãe e pai não larga a criança em qualquer lugar por aí. É claro que às vezes elas vão dormir no vô ou na casa de um amiguinho, mas quando temos filhos estamos com nossos filhos a maior parte do tempo. E mais: a gente gosta de curtir os momentos de lazer com nossos filhos. Assim que funciona uma família. Então, não, não dá para deixar a criança com outra pessoa para podermos jantar ou nos hospedar em um hotel só porque você não nos quer lá. E, mesmo que a gente decida deixar a criança com um parente para fazer alguma coisa, essa decisão é nossa, não sua, nem do estabelecimento em questão.
“Tá, então o que você quer de mim?”. Eu quero tolerância e respeito com as crianças e com seus cuidadores. Eu não quero mais que você olhe feio para famílias com crianças, porque elas têm o direito de frequentar os lugares que você frequenta. Eu quero que você entenda que, como parte da sociedade, é seu papel também ajudar as crianças a aprenderem a participar da sociedade. Eu quero carinho com as crianças e não quero bufadas ou olhares impacientes. É bizarro ter que dizer isso, mas eu não quero mais ódio pelas crianças. É só isso que eu quero.