Sempre achei que “sabático” significava necessariamente pedir demissão e comprar uma passagem só de ida para algum lugar exótico. Morria de inveja de pessoas em seus sabáticos. Muita inveja. Essa definição de sabático não encaixava na minha vida de mãe, então nenhum sabático estava programado pelos próximos 15 anos. Só que algumas coisas estavam acontecendo na minha vida:
- Conciliar carreira e maternidade estava impossível e eu achava que não era boa nem em uma coisa, nem em outra. Alguns textos meus sobre este item aqui, aqui, aqui, aqui e aqui.
- Aécio
- Eu não estava feliz no emprego atual e em determinado momento resolvi partir pro clássico atualizar-CV-e-sair-panfletando-por-aí. Procurar outro emprego significaria ser chamada para entrevistas, onde eu deveria contar o quão linda tinha sido minha carreira até então e o quão entusiasmada eu estava para ocupar um cargo em outra empresa. E aí eu me dei conta que não conseguiria entrar em um papo desses, porque eu não achava minha carreira linda e nem queria outro cargo em nenhuma outra empresa.
- Eu não era livre. Eu tinha que dar satisfações sobre o horário que ia chegar no escritório, sobre o horário que ia sair, sobre a hora que ia almoçar, onde eu ia e quanto tempo demoraria para voltar, sobre o motivo de ter desligado o celular ou não ter atendido uma chamada, sobre as reuniões de trabalho que eu tinha no dia, sobre os compromissos que meus filhos tinham em horário comercial etc. “Etc.” aqui significa outras 160 mil coisas sobre as quais eu tinha que dar satisfação para alguém. Eu vivia pedindo desculpas por não ter feito uma coisa ou por ter feito outra.
- Fazer doutorado está nos meus planos desde que terminei o mestrado e eu vinha pensando fortemente em fazer fora do país. Um dos requisitos em vários processos seletivos são notas altas no GMAT e no TOEFL e não havia nenhuma chance de encaixar a preparação para os exames naquela vida vulgar que eu levava, então eu comecei a cogitar uma parada de alguns meses na vida executiva para estudar. Só não tinha data para acontecer.
- Como eu pensava que em algum momento eu iria me dedicar somente ao GMAT, eu fiz as contas para saber quantos meses eu sobreviveria sem salário, então eu sabia que era financeiramente possível passar alguns meses sem trabalhar.
Sabático não era um plano, não tinha data, nada. Até que um belo dia eu “acordei” do que estava fazendo e me vi na seguinte cena: algumas pessoas em uma sala de reunião, um problema com cliente para resolver, todo mundo nervoso tentando achar culpados. Uma pessoa em pé na minha frente, gritando e gesticulando comigo, em um tom nem um pouco educado. Eu, sentada, em posição de defesa, falando em tom alto, respondendo, também não muito educada. Na hora em que “acordei”, olhei para duas cadeiras vazias na sala e imaginei Isaac e Ruth sentados ali. Quando imaginei os dois vendo aquela cena, imaginei duas carinhas de decepção. Imaginei perguntas assim: por que aquele moço grita tanto com você, mamãe? Por que você fala alto também, por que você não fala baixo e conversa como sempre ensina a gente? Por que você estava tão brava, você estava com raiva? Você não é feliz no trabalho, mamãe? E, por fim, imaginei a Ruth me dizendo: “a gente precisa sempre conversar falando baixo para resolver o problema e pedir desculpas quando grita”. Eu morri de vergonha. Eu nunca queria que meus filhos soubessem como era trabalhar. Aqueles dias em que a gente leva filhos para conhecer o trabalho dos pais é tudo uma farsa (sabem, dia das crianças e Natal?).
Eu pedi para reavaliarmos o tom de voz e o tom da conversa, mas não rolou. Pedi de novo, não rolou de novo. Na verdade, recebi um feedback de que estava me preocupando com questões não-importantes, que o problema do cliente era mais importante que o fato de estarmos ou não estarmos sendo educados um com o outro naquela reunião interna. Aí eu pedi licença, disse que iria para minha casa, que não queria seguir com uma reunião sem educação e que poderíamos continuar no dia seguinte. Saí do escritório às 17h30 pela primeira vez em 12 anos e fui para casa. No dia seguinte pedi demissão e fui viver a vida adoidado (mentira, trabalhei mais uns dias até passar minhas coisas para outras pessoas do time e tal). Só para deixar claro: eu não pedi demissão por causa de uma reunião ruim. Já tive várias reuniões ruins durante minha vida profissional e aquela reunião foi muito parecida com outras 500 que já fiz. Só que naquele dia eu vi com clareza que eu não estava feliz fazendo o que eu fazia, que minha carreira e minha vida são responsabilidade só minha e que só eu poderia fazer alguma coisa para ser mais feliz.
No dia em que pedi demissão, comprei nossas passagens para Paris. Não ia dar para viajar o mundo, mas eu iria me dar as férias mais legais do mundo junto com meus três amores. Eu não tinha muitos planos para os próximos meses; não sabia o que iria fazer da vida, mas já sabia o que não queria fazer. Usei meus meses de sabático para estudar, conversar com pessoas, pensar na vida, fazer cursos, cuidar da família, ler, escrever.
A sensação de liberdade que tive nesses últimos meses por não ter cobranças, por ser dona do meu tempo e por poder fazer só o que me faz feliz foi tão intensa, tão indescritível e tão necessária que não sei mais viver sem ela. Liberdade é um valor fundamental para mim. Em qualquer coisa que eu decida me envolver daqui para frente, liberdade será essencial. Eu quero ser para sempre dona do meu cérebro (ou seja, eu quero decidir como usar minha cabeça) e do meu tempo.
Hoje já tenho uma boa ideia dos meus próximos passos e do que quero fazer da vida, e já não me considero mais em um sabático. Não tenho um emprego nem renda fixa, mas estou envolvida em tanta coisa que já não dá mais para chamar de sabático, como se fosse um período passageiro. Já é uma nova fase.
Além da liberdade e de fazer questão de ser dona do meu tempo, aprendi outras coisas nesses últimos meses. A mais reveladora: trabalhar dá muita despesa. Eu recebia todos os meses um valor líquido e gastava 100% deste valor, então achei que este era o dinheiro que eu precisaria todos os meses para viver. Gente, sem trabalhar eu gasto metade. Grande parte das despesas que eu tinha existia porque eu trabalhava muitas horas por dia: empregada doméstica, babá, escola por 12 horas, jantar na escola para as crianças, taxi, perua escolar, almoços mega caros (oi, São Paulo e seus singelos almoços de R$ 50-R$ 80), roupas sociais, manicure semanal e, claro, aquele monte de presente de que a gente se dá para compensar o sofrimento todo. Custa caro trabalhar. Sabe aquela conta que diz que só começamos a receber nosso salário em abril, depois de pagarmos todos os impostos? Eu descobri que só começava a ganhar meu salário todo dia depois do almoço, porque trabalhava de manhã apenas para pagar a estrutura que eu tinha para poder trabalhar.