Ensaio sobre um relacionamento abusivo

Eu preciso escrever porque demorei para entender.

Demorei para me re-conhecer, no sentido de me conhecer novamente.

Demorei para aceitar que não tive culpa, nem culpa pelo relacionamento ser tão ruim, nem culpa por não ter percebido logo nos primeiros meses que seria tão ruim.

Eu quero escrever para colocar isso para fora de mim. Para não viver sozinha com essa história. Porque eu acho que foi essa história que fez meu corpo reagir e criar câncer, então eu preciso escrever sobre isso. Porque eu acredito enormemente que meu último relacionamento me fez ter câncer.

A gente nunca se apaixona por um abusador. A gente se apaixona por uma pessoa inteligente, que gosta de música clássica, de artes, que fala muitas línguas porque gosta de ler e de viajar, que faz esportes, que topa aventuras, que quer mostrar coisas novas. A gente se apaixona por alguém que nos acha linda, que traz presentes, que faz favores carinhosos, que trata bem. É por isso que a gente se apaixona. E os abusadores e as pessoas pelas quais nos apaixonamos são as mesmas pessoas, e por isso tudo é tão macabro e tão difícil.

Meu abuso começou com ciúmes. Até então, aos 35 anos, eu nunca tinha lidado com ciúmes, porque meus dois relacionamentos anteriores não tinham ciúmes de nenhuma das partes, era tudo muito tranquilo.

Hoje eu sei bem que ciúmes é algo ruim. Não tem ciúmes bom, não tem ciúmes fofo, não tem carinho em ciúmes. Ciúmes tem duas possibilidades: 1) ou você está perdendo tempo sentindo ciúmes quando não há motivos para sentir, ou 2) ou você está vendo algo real acontecer que te incomoda e você deveria sair da relação. A opção de mudar ou controlar o outro nunca existe. Se a outra pessoa faz algo que você não gosta, você sai.

Relacionamento tem que ser baseado em confiança, carinho e parceria. É só assim para durar e ser a “sorte de um amor tranquilo”. Eu tive dois relacionamentos desse tipo na vida, um que durou uns 4 anos, outro que durou quase 10, com duas pessoas com quem mantenho amizade e carinho até hoje, mas só agora é que eu pude re-confirmar para mim mesma que relacionamento é confiança, carinho e parceria, agora que há mais de dois anos tenho um relacionamento assim novamente, do jeito que acredito.

Eu vivi dois tipos de ciúmes, igualmente destrutivos. Chamam-se “ciúmes do meu passado” e “ciúmes do que pode acontecer”. Ciúmes do passado é, como o próprio nome diz, a pessoa sentir ciúmes de algo que você já fez antes do relacionamento. O que você já fez no passado, que pode ser um passado recente ou distante, se caracteriza por algo que você não pode deixar de fazer, porque você já fez. Não tem undo. Faz, inclusive, parte de quem você é, porque todas as coisas que fazemos nos constrói. É abuso condenar uma pessoa por algo que ela já fez e que não pode mudar. No meu caso, especificamente, não se tratavam de coisas das quais eu me envergonhava ou que eu gostaria de não ter feito, e acho que isso piorava a situação. Eu era abusada por coisas que vivi, das quais eu não me arrependia, com pessoas que continuam frequentando minha vida, e era castigada por isso. Fui castigada em meu relacionamento diversas vezes por coisas que eu tinha feito antes de conhecê-lo. Aí veio junto o ciúmes do que pode acontecer e que, para mim, foi a parte onde mais me senti violentada no relacionamento. Porque enquanto meu passado pelo menos era algo limitado a ele mesmo, as coisas que poderiam acontecer eram infinitas e existiam em todos os lugares.

Existia na carona que peguei para encontrá-lo, quando tive que descer do carro no meio do percurso porque ele queria que eu tivesse ido de ônibus. Existia no pedido para excluir um colega de trabalho das minhas redes sociais porque ele curtia todas as minhas fotos muito rápido, assim que eu postava (nem eu tinha esse controle). Existia no dia em que um amigo querido postou uma matéria com as melhores praias de nudismo na minha página em rede social e fui obrigada a apagar para ninguém ficar achando que eu ficava nua nas praias. Existia na meia dúzia de amigos meus que não deveriam mais ser meus amigos porque o interesse ali era apenas sexo, porque eu me reduzia a apenas um objeto sexual para as pessoas.

Os argumentos, claro, eram manipuladores e não se restringiam a “não quero que você faça isso”. Os argumentos me davam medo. “Você pode morrer pegando uma carona com alguém que dirige mal – imagina ainda se matar seus filhos (uma vez cogitei ir e voltar de um casamento no interior com as crianças de carona com um amigo, mas acabei me vendo coagida a dirigir meu próprio carro com medo de as crianças morrerem por pegarmos carona)”. “As pessoas do trabalho vão te achar pervertida com esses links de praia de nudismo e você pode até ser demitida”. “Você vai almoçar com esse cara hoje, amanhã ele vai sair dizendo para todo mundo que você queria dar para ele e você vai ficar com fama de puta”. Então era assim que eu era abusada. Eu deveria deixar de fazer algo que era absolutamente normal para mim porque ele me amava e me queria muito e, quando este argumento não era suficiente para mim – que nunca relacionei amor com controle – eu passava a receber ameaças sobre minha vida, minha reputação, minha integridade física, coisas que eu nunca tinha pensado mesmo, porque, afinal, eram coisas absolutamente normais para mim.

Às vezes eu enfrentava essa tentativa de dominação. Eu tinha amigos que eram alvo do “não fale mais com ele” que continuei vendo. Mas sempre com medo. Nunca menti ou fiz escondido, mas encontrava meus amigos para almoçar arquitetando como sentar bem longe, como garantir que não iríamos nos esbarrar muito, como ter certeza que ninguém iria nos fotografar em qualquer posição estranha. Depois voltava para casa para encarar a cara de desprezo dele por eu ser alguém incapaz de zelar pela minha própria imagem por aí.

Eu tive força para não me afastar das pessoas que realmente eram meus amigos, ainda bem. Muitos dos caras que eu nunca mais deveria ver ainda estão em minha vida, e me agradeço. Mas deixei de fazer amizades, deixei para trás contatos ainda não tão firmes porque às vezes não valia a energia de brigar tanto em casa. Afinal, eu tinha tudo o que precisava, uma pessoa ótima e apaixonada por mim.

Em algum momento o abuso passou a ser do tipo “você me envergonha”. São várias coisas aí. “Solte o cabelo e arruma um pouco aí pra sair na foto, que assim tá muito feia”. “Não prende seu cabelo pra trás porque sua testa é imensa e fica horrível”. “Não diga para as pessoas do meu trabalho que você votou na Dilma, pega mal no ambiente corporativo”. Uma vez tomei uma bronca porque estava discutindo se era sensato ou não permitir que hotéis e restaurante proíbam crianças com colegas de trekking, e a maioria deles achava absolutamente normal essa proibição e eu estava sendo uma chata em ficar dando argumentos contrários para as pessoas no meio das férias. Outra vez tomei uma bronca que me fez chorar porque entrei em um ônibus com uma mala de viagens, tropecei e tive que me segurar com as duas mãos, deixando a mala cair em cima de uma pessoa. Nas duas situações, não acho que as pessoas terceiras se incomodaram comigo, uma porque eu estava conversando, outra porque tinha me desequilibrado sem querer. Mas ele se envergonhou, se incomodou. Eu já fui empurrada em fila de passaporte na imigração porque estava no celular e a fila andou na minha frente e eu fiquei parada. Já brigamos porque eu fiquei tempo demais na casa de uma amiga em um domingo, sem ter noção do quanto eu a estava incomodando em não me tocar que deveria ir embora. Já brigamos porque chamei o Uber e fui me despedir da minha família (tipo 15 pessoas em um apartamento) e deixei o motorista esperando 5 minutos, uma imensa falta de educação.

Meu abuso passou também para “toda culpa da minha infelicidade é sua”. Problemas no trabalho? Culpa minha. O quadro caiu da parede? Culpa minha. Uma vez uma viagem com o pai dele não rolou porque o pai não quis ir (na verdade ele não quis correr atrás de um passaporte vencido de uma hora pra outra), culpa de quem? Né?

Em geral, eu chorava muito nessas brigas, doía a alma. Não era tanto a briga em si, mas a discrepância entre me sentir desrespeitada e violada de um lado, e de ter alguém que deveria me dar amor tão pouco interessado em não me magoar de outro. E eu só consegui agora, praticamente nesse mês, a entender a diferença entre brigar com um namorado e sofrer um abuso dentro de um relacionamento: são as intenções da pessoa em te magoar e/ ou em não querer te tirar do sofrimento.

Eu brigo de vez em quando com meu namorado atual, assim como briguei com todas as pessoas com quem me relacionei porque acontece. Mas tem uma diferença essencial na forma como sou tratada hoje (que provavelmente era forma como eu era tratada nos relacionamentos anteriores) que é: meu namorado não quer me magoar. Quando ele percebe que me magoou, e geralmente ele magoa sem querer, ele pára tudo o que está acontecendo para eu não sofrer e NUNCA MAIS faz a mesma coisa que me magoa. Mas, nossa, Ruri, não é óbvio que seja assim em um relacionamento? Pois é, não. Eu vivi alguns anos passando pelo mesmo tipo de briga e pelo mesmo tipo de mágoa, repetindo, gritando, implorando para ser ouvida nas coisas que me magoavam, mas elas voltavam a acontecer do mesmo jeito. E só hoje, quase três anos depois do livramento, com mais de dois anos em um relacionamento bacana, que consegui ter clareza da diferença entre alguém que simplesmente partiu meu coração e por isso terminamos e alguém que tentou me destruir por dentro. Só hoje que consegui olhar para trás e ver que, quando reclamo de alguma coisa para meu atual namorado, ele me olha e me escuta e nos acertamos. Só hoje consegui resgatar as tantas vezes que reclamei de alguma coisa no relacionamento anterior e recebi um olhar de desprezo e uma bufada. Só hoje eu percebi que a questão não era brigar, mas o prazer que existia em algum lugar ali em fazer e deixar o outro sofrer. E isso nunca poderia ser amor, porque amor é querer deixar a outra pessoa feliz, e passa por tentar entender o que faz essa pessoa infeliz também.

Mas também, em determinado ponto do relacionamento, eu virei a pessoa chata, insuportável, difícil. “Nossa como você é difícil”. “Nossa que escolha errada eu fiz quando decidi ficar com você”. “Nossa eu já fiz/ faço tudo isso, isso e aquilo por você e você ainda quer mais XPTO?”. Na época, isso me abalava, e eu tinha que fazer esforços sobrenaturais para não ser chata, insuportável e difícil, porque eu não queria ser essa pessoa que ninguém quer por perto, mas óbvio que era um ciclo de sofrimento, de auto-estima lá embaixo, de mais estímulos para sofrer. É um ciclo de tratar mal alguém, de repetir coisas que já sabe que magoa e de achar ruim que a pessoa que você trata mal ainda por cima é chata, insuportável, difícil. Eu não sou chata, insuportável, difícil, nunca fui. Mas me achei e me senti assim por muitos meses, e me vi diversas vezes tentando ser legal com alguém que não era legal comigo porque eu não queria que a culpa fosse minha de destruir um relacionamento que tinha tudo para ser legal. É incoerente para caramba, mas foi assim que vivi durante muito tempo: tentando consertar uma situação toda errada porque a culpa de ela ser tão errada era toda minha.

E aí, por algum motivo inexplicável da vida, uma hora eu me tornei a pessoa ciumenta, controladora e louca do relacionamento. Ser chamada de controladora e louca passou por cima de tudo o que eu achava razoável, porque eu sabia bem que nunca tinha sentido ciúmes de ninguém, mas eu também achava que pudesse estar mesmo enlouquecendo e precisava melhorar. O meu abuso teve a fase de fazer eu sentir ciúmes, porque se todos os argumentos para me podar não foram suficientes todos esses anos, nada mais justo que eu sentisse ciúmes também para sentir na pele o que eu fazia ele passar. E aí eu me vi mesmo em situações que nem eu sabia o que estava fazendo, se estava com ciúmes besta ou com a real desconfiança que ele fazia coisas que eu não gostaria que fizesse, que são justamente as duas formas para não se viver um relacionamento. Mas eu estava lá, eu era a vilã agora, eu que deveria melhorar meu comportamento para voltar a ser merecedora do amor daquele homem. As fases que vieram eram sempre muito contraditórias, porque eu nunca conseguia adivinhar. Se mandasse mensagem para saber dele, eu era controladora. Se eu não percebesse há quantas horas ele não dava notícias e ia dormir sem nem ver a hora que ele chegou, eu era fria e não me importava. Se eu chamasse para jantar fora, estava querendo ocupar todas as horas dele, se eu fosse ao cinema com uma amiga, estava abandonando ele sozinho ele. Eu nunca adivinhava a coisa certa a se fazer obviamente.

E só hoje eu me dei conta de como é bom estar com alguém para quem posso mandar uma mensagem ou ligar a hora que me der vontade sem ter medo do que ele vai pensar, e como é bom também às vezes passar horas sem me comunicar porque estou enrolada e depois quando nos falamos tá tudo bem. Como é bom que a gente faça tantos programas separados quanto programas juntos, e eu não tenho medo dele. Não tenho medo de tomar bronca, de cara feia, de mandar mensagem, de não mandar mensagem, de perguntar o que ele fez e onde está e de responder onde estou. Amor é assim, leve. Amor não tem medo.

Amor não é alguém que acha que não precisa te dizer onde vai e com quem vai, porque se você não acredita em ciúmes, então você é obrigada a aceitar não ser tratada com respeito. Amor não é receber olhares de desprezo e ainda ter que rebolar para conseguir reverter esse olhar em algo carinhoso. Amor é confiança, carinho e parceria. Amor, porra, é amor!

Eu saí destruída desse relacionamento e meu corpo somatizou tudo o que eu passei. Eu tive câncer por causa deste relacionamento. Os meses que vieram depois da separação foram desesperadores, porque eu me vi desempregada, destruída, com câncer de mama e com uma cereja no bolo: eu ainda estava como dependente no plano de saúde do abusador, porque ainda não tinha tido tempo de mudar todos os documentos, contas, planos e afins. Passei meses me vendo coagida a agradecer eternamente pela oportunidade de me tratar, a me desculpar semanalmente pelo trabalho que dava a infinidade de documentos, pedidos de reembolsos e contatos do plano de saúde, e a manter uma relação cordial com ele, que estava me fazendo a maior bondade que alguém poderia ter me feito durante o câncer. Recebi várias vezes ameaças de me tirar o plano de saúde, que depois se concretizaram, e me vi sozinha, com câncer, desempregada e sem plano de saúde, gastanto muito dinheiro com advogados para resolver essa situação. Mas o fato é que, mesmo depois de ter conseguido sair do relacionamento, eu ainda me vi em mais uns meses de abuso que questões burocráticas: o fato de ainda não ter mudado o plano de saúde quando descobri o câncer me deixou amarrada à coação, ao assédio, e à tortura psicológica um tempo mais. E foi só quando ele me tirou o plano de saúde que eu consegui me ver livre de verdade, porque eu não me sentia mais obrigada a tomar chá de boldo na casa de alguém só pra tentar ser educada, manja?

Hoje estou pronta para falar que eu sei que não tive culpa. Hoje sei que pode acontecer com qualquer uma, e aprendi a não julgar a dificuldade que as mulheres têm de sair de relacionamentos abusivos. A teoria toda sobre abusos não cobre toda a prática, não cobre a dependência que criamos, a confusão entre alguém que amamos e que nos faz mal, a dificuldade que é recuperar a auto-estima para ter claro que não somos as vilãs e que tem um mundo lindo lá fora nos esperando de braços abertos. A parte mais cruel do relacionamento abusivo é ele te fazer mal a ponto de você acreditar que você é tão ruim que o máximo que pode merecer na vida é continuar no relacionamento abusivo que te destrói. E, falo por experiência própria, é bem difícil romper esse ciclo e sair dele.

Eu me perdoo por ter me culpado, me perdoo por ter me deixado viver nesse horror, porque eu fiz o melhor que eu sabia fazer por mim mesma na época. Se você está passando por isso, esse post é também para você. Para dizer que nos encontraremos aqui fora, que você é uma pessoa maravilhosa e que vai ficar tudo bem.

Ao meu namorado atual, eu não tenho que te agradecer, mas eu agradeço ao universo a sorte que tive em poder voltar a viver livre, leve, sem ciúmes, sem neuras, só com briguinhas bobas, com muito amor, muito pedal, muitas aventuras. Obrigada, universo, pela combinação de companheirismo e liberdade que pude voltar a ter na vida.

 

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Um pensamento sobre “Ensaio sobre um relacionamento abusivo

  1. Élide disse:

    Ruri

    Obrigado ao universo por um texto tão sincero e libertador!

    Feliz Vida!

    Bjs em Isaque e Ruth

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