Relato de prova – desafio KOM

Resolvi escrever meu relato de prova aqui. Eu sei que criei esse blog para falar sobre adoção e maternidade, mas ele é também meu espaço de registros da vida, que eu gosto de reler às vezes, e que eu também espero que Isaac e Ruth possam ler um dia. Tipo “livro de memórias da mamae”.

E ontem foi um dia muito especial.

Eu sempre dei a devida atenção para atividades físicas. Nunca fui amante de educação física na escola, seguia apenas as aulinhas de natação e ballet que mamãe pagava, mas na vida adulta entendi bem a importância de “pagar uma academia e frequentá-la”. Sempre fiz alguma coisa, mesmo nas épocas de consultoriavidaloka, trabalhando 14-16h por dia, eu dava um jeito de ir na academia umas 3 vezes na semana. E fazia um pouco de corrida de rua, tentei voltar a nadar há uns 5 anos, pedalava aos finais de semana em trilhas, sempre gostei de trekking. Enfim, sempre mexia o corpo.

Mas o câncer me trouxe uma relação muito diferente de tudo isso, porque me colocou de frente a uma série de dores reais: medo de morrer, perda de força e de movimentos, baixa imunidade, fraqueza, dores físicas persistentes, mil incertezas, uma lista de coisas que eu poderia fazer para ser feliz mesmo que não pudesse contar tanto com meu corpo. Porque imagina a cabeça de alguém que tem uma bucket list cheia de trilhas, travessias, escaladas e montanhas ter que pensar em uma nova lista sem essas coisas.

Eu me saí bem disso. Eu passei por mastectomia bilaterial com reconstrução imediata, sofri muito, tive muita paciência e passou. E a vontade de fazer um triathlon veio aí nessa confusão, veio de uma vontade imensa de poder usar meu corpo para fazer coisas que gosto, e eu gostava de correr, nadar e pedalar, e eu também queria fazer algo MUITO LEGAL e minha primeira prova foi muito legal.

Aí na lista começaram a aparecer outras coisas que podem ser muito legais, tipo: meia maratona (já me inscrevi), travessia longa em mar aberto (checked), prova de ciclismo. Aí entra o KOM e meu relato da prova, porque eu não quero esquecer.

Primeiro, quero dizer que essa não é uma prova de iniciante, porque é uma altimetria filha-da-puta e, embora eu tenha treinado muito nas ladeiras da USP, mano do céu. Eu tinha estudado a altimetria da prova pela Internet antes e no dia anterior fui conhecer o percurso de carro. Eu estava com um carro automático e cansei dos 60km só de dirigir em tanto sobe-desce-curvapraesquerda-curvapradireita. O percurso é uma montanha-russa. Foi bom ter conhecido antes da prova, mas eu passei mal fisicamente de nervoso na véspera e na manhã da prova. Dormi enjoada, acordei com diarréia, sofri pra tomar o café da manhã, saí da pousada pedalando até a largada já achando que eu poderia morrer nesse percurso de 3km até chegar lá.

Porque se tem uma característica minha é ser cagona. Sou muito. Jamais vou pular de nada alto, tipo pára-quedas ou bungee jump ou asa delta, tenho medo de mergulhar e ficar sem ar no cilindro, fiz duas provas de natação em mar e tive uns pânicos de vou-morrer-afogada sem que nada estivesse acontecendo. No ciclismo, tenho dois medos específicos: cagaço de descida, de não frear, principalmente de passar reto numa curva e cair num barranco, cagaço de estar clipada numa subida e perder a potência pra pedalar e não conseguir desclipar e cair madura no chão (nunca passei reto numa curva na descida, mas essa segunda situação já aconteceu). E o desafio KOM era basicamente subir pracariao, logo, me estribuchando, e descer pracaraio, me cagando.

A prova começa em uma descida, de paralelepípedos, que depois vira uma via inclinada cheia de curvas para terminar numa curva fechadaça e esburacada. E eu não consegui largar na muvuca, porque também estava com medo de, sei lá, encostar na bike de alguém e todo mundo ir pro chão. Então eu larguei por último, desci freando me cagando pelos paralelepípedos e pela ladeira e cheguei lá embaixo já sabendo que eu nunca mais ia alcançar ninguém (porque eu freio na descida, mas não é que eu disparo na subida, então não tem como). Fui sozinha bem pra trás.

Mas os primeiros 10-12km de prova eu tava drogada de adrenalina e gel de carboidrato e fui bem. Tipo vi média de 21km/h no relógio e fiquei pensando “nossa continuando assim dá pra fechar em 3h, que coisa linda”. Ã-hã. Km 14 eu fiz a primeira besteira da prova. Eu tava sozinha, entendiada, com calor, pensando em caipirinha (que minha cabeça boicotadora fica me mandando parar de coisa loka e ir comer gordice com caipirinha), e empurrei a bike em uma subida. Frouxice minha. Não era inclinada, não era longa, eu nem tava cansada, eu tava sendo frouxa. Mas o problema de ser frouxa uma vez é que abre caminho pra ser frouxa o tempo e lá fui eu mais pra frente, km18-19 talvez empurrar a bike novamente. Nessa hora encontrei meu pelotão, dois caras que estavam acabados e também empurrando a bike. Viramos amigos, fomos um cortando o vento pro outro enquanto o outro empurrava (piada besta). Na verdade, subimos na bike e fomos pedalando a 5km/h.

Lá pelo km 22 o Jorge falou assim “gente, sigam aí, pra mim não dá mais, vou voltar”. E aí me caiu a ficha de que não, Jorge, como assim, faltam 8km pra chegar em Campos Novos, a gente TEM QUE ir até lá. Fiquei falando, não, Jorge, pera, vamos pensar melhor nisso, e também não me tente, porque se você voltar vou querer ir atrás. Vamos, só 8km, vamos, lá a gente chama um Uber. E aí eu tirei uma força de não sei onde para não descer mais da poha da bicicleta e ficar motivando Jorge, porque se ele voltasse eu ia voltar, e eu não queria voltar, eu queria pelo menos fazer metade da prova e chegar na cidadezinha. E nós chegamos.

Campos Novos fica no meio de um abismo, é a pior descida do mundo pra chegar até lá. Você entra na cidade parecendo que mergulhou de cabeça de um arranha-céu e não consegue parar a bicicleta até chegar na parte mais baixa da cidade, depois da igreja, depois da praça, e eu cheguei lá agradecendo estar viva e intacta. Tomamos água e isotônico, eu e o Jorge, e começamos a subida de volta. A subida que também era a pior parte, porque ter que sair do precipício é pior que cair dentro dele, certo? O Jorge desistiu uns 50m depois e entrou no carro de apoio, que estava na cidade para fechar a prova, esperando os últimos atletas a fazerem a volta. Éramos 4: o outro amigo que saiu na frente, um senhor de mtb que pedalou ao meu lado a subida-filha-da-mãe, e Jorge no carro de apoio. No fim da subida filha-da-mãe, o pneu do senhor da mtb furou, o pessoal tentou ajudar, mas não rolou e ele teve que voltar no carro também.

Eu fiz a volta toda com o carro de apoio da minha roda, fechando a prova, seguido de uma ambulância do SUS atrás. 30 km de volta e meu maior orgulho nessa prova foi que em nenhum momento eu pensei em subir no furgão (ou na ambulância). Eu não sou boa de dominar minha cabeça, então a superação para mim foi essa. Porque o carro estava bem atrás de mim, tava muito fácil sentar lá e voltar tudo de boa, porque eu já sabia que ia fazer a prova em mais de 4h (e o limite para completar eram 4h, então eu não sabia nem se iam me dar a medalha). Faltando 15km pra completar, num calor desgraçado e ainda muito morro pela frente, o outro atleta desistiu e voltou de carro. E eu continuei na estrada, pedalando como ainda aguentava, empurrando de vez em quando, me soltando nas descidas pra descansar. Empurrei, sim, mas fui eu que empurrei, ninguém tocou na minha bike. Empurrar bike na ladeira cansada com sol também é sofrido, então eu tentei pedalar o que dava. Não tinha mais perna, mas eu consegui sustentar na minha cabeça que eu ia chegar com as minhas pernas em Cunha, nem que fosse engatinhando. E eu fui. No caminho, ainda cruzei com mais dois atletas que não conseguiram completar de bike, mas fui seguindo em frente e cheguei de volta, passei a linha de chegada pedalando.

Quase desabei quando completei, cheguei a perder o ar, senti cãimbra, me acabei de chorar de emoção. Foi muito legal. Cruzei a linha ouvindo as buzinas do carro de apoio que me escoltou 30km com os outros atletas dentro torcendo para eu não desistir, a sirene da ambulância que vinha atrás caso eu morresse e as sirenes da polícia que esperavam a última a chegar pra poder liberar a via. Foi muito emocionante. Meu namorado filmou essa chegada e é o melhor filme que tenho fazendo esporte.

4h17. Média de 14km/h. Máxima de 48,5, e várias subidas loucas que penei. Mas esses números não são o que importam. O que eu me orgulho mais é de ter conseguido não desistir. Porque não é fácil não desistir com tudo bem fácil para desistir, tipo um carro confortável com rack de teto e água bem geladinha bem atrás de você. Mas subir não me passou pela cabeça e me amo muito por isso.

Jorge, obrigada por terminar a ida, porque foi por você que cheguei em Campos Novos. Pessoal da bicicletaria que estava no carro de apoio: OBRIGADA. Obrigada por estarem ali, mas obrigada por em nenhum momento me sugerirem desistir, obrigada por andar a 4km/h atrás de mim enquanto eu penava nas ladeiras sem perguntar se eu tava loka de fazer isso, obrigada pela paciência de fazer um percurso de 30km em mais de 2h.

 

 

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