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Ernesto

Ernesto, eu não te queria. Eu já tinha perdido o Fidel quando me separei do meu primeiro marido e já tinha decidido que eu não queria mais ter cachorro. Sabe o que é, Ernesto? Eu era mãe solo de duas crianças bem pestinhas e tinha certeza que não queria mais criar nenhum ser vivo nesta encarnação.

Mas aí eu cedi, concordei, achei que de repente seria uma boa ideia e te trouxe pra casa. Pra me arrepender algumas horas depois.

Eu não tava a fim de educar cachorro, Ernesto. Mas não teve outro jeito. Eu tive que te ensinar, a contragosto, a fazer xixi e cocô no lugar certo, a comer ração nos horários, a não destruir minhas coisas, a não subir na minha cama, a andar de coleira na rua. Eu tive que te vacinar, te dar banho, limpar a sujeira, comprar suas coisinhas. 

Affe, Ernesto, como foi difícil. Você queria comer as peças dos quebra-cabeças e quase derrubava a porta se eu te deixasse em outro cômodo para as crianças poderem brincar. Você comia os brinquedos deles, meus livros, os objetos de decoração, e ainda fazia muito xixi e cocô para eu limpar. Como. Foi. Difícil.

E você latia muito, Ernesto, muito. Você demorou para entender que eu sempre volto. Sempre. Nunca durmo fora, cãozinho, por sua causa. Mas você latiu tanto, que os vizinhos reclamaram, e eu tive que ter um adestrador.

Foi difícil também te adestrar. Não só porque adestramento custa dinheiro e tempo (meu). Mas porque eu que fui adestrada, eu tive que aprender que tinha um ser vivo com necessidades e sentimentos dependendo de mim e que eu precisaria pensar nisso todos os dias. Eu precisei mudar a casa e as coisas que eu fazia para você ficar bem e eu penei com isso. Que fase.

Mas quando eu tive uma deixa, eu não cogitei deixar você ir. Nunca foi uma opção você ir embora. Esta é sua casa, sua família e você vai viver conosco. Comigo.

Você ganhou meu coração com esse jeito incrível de melhor cachorro que já tive. Você me ama todos os dias, mesmo nos dias em que não te levo pra passear ou esqueço da sua comida (acontece). Você me recebe com a mesma alegria se te deixo sozinho por 10 minutos ou 12 horas e você nunca ficou bravo ou guardou rancor por nada. Você nunca recusou um abraço ou um carinho e sei bem que a maior felicidade da sua vida é todo mundo chegar em casa no final do dia. E você ri quando eu te chamo. Eu tenho um cachorro que dá risada, gente.

Você me ajuda a ensinar para minhas crianças o que é família e amor incondicional. Toda vez que você faz alguma besteira (continuam acontecendo), eles me perguntam se vou mandar você embora. E eu te uso para explicar que não, que sua casa é aqui, que estou brava mas sigo te amando e que você nunca vai embora. Que depois vamos desculpar, esquecer e continuar nos amando. Você também me ajuda a ensinar para eles a responsabilidade que temos com os seres que dependem da gente, porque temos que te alimentar, te lavar, te levar ao médico e te preparar para ficar sozinho quando vamos sair. E que temos que cuidar de tudo juntos, então eles recolhem seus brinquedos e sua bagunça quando chegam da escola enquanto eu limpo o xixi e o cocô.

Eu te amo porque você gosta de tudo, Ernesto. Porque você gosta dos meus filhos, dos meus amigos e do meu namorado, e porque você tem certeza que as pessoas vão em casa para te visitar. Amo seu olhar de bagunçado que você tem, e amo quando você encolhe as orelhas denunciando que fez caca. Também amo quando você gruda na porta do corredor quando já está tarde e ainda estou trabalhando na sala, porque você quer que a gente vá pro quarto. Amo que você come todos os petiscos vegetarianos que te dou e morro de orgulho quando você devora talinhos de rúcula. E amo que você é meu melhor amigo de corrida, porque é pra você ficar bem durante o dia que eu saio da cama cedão pra gente correr, e parabéns por já ter chegado aos 10k! Juro que sempre penso se um dia você não devia fazer mountain bike comigo e correr ao meu lado nas trilhas.

Eu não te queria, mas não te largo por nada, Ernesto. Tô voltando de viagem a trabalho e saber que já te levaram para casa e que você vai estar lá pra me receber com pulos e latidinhos alegra meu fim de noite. Sabe o que é? Home is where your dog is 🙂

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Ninguém é mãe de pet

Eu já tinha rascunhado um texto sobre o assunto há um tempo, mas achei que estava fazendo uma comparação infeliz entre crianças e cachorros. Mas o dia das mães está chegando e tenho lido outras mães/ mulheres falando sobre a não-maternidade de cachorros/ gatos/ periquitos e afins. Então queria dizer para vocês: ninguém é mãe (ou pai) de pet. Você ama e cuida, mas não isso não caracteriza uma maternidade/ paternidade. Você não está treinando para um dia ter um filho porque tem/ ama/ cuida de um pet, porque isso não treina ninguém para nada.

Então, para ser clara, vou comparar o que é ser mãe e o que é ter um cachorrinho (Ernesto, nosso cachorro, foi adotado há uns seis meses).

  • Eu me preocupei em ensinar *apenas* duas coisas para o Ernesto: fazer xixi/ cocô no tapete higiênico e não latir enlouquecidamente quando fica sozinho em casa. Ele aprendeu essas duas coisas super bem em apenas algumas semanas na família e coloquei um ponto final na minha missão de ensinar algo para ele. Ah, sim, depois ensinamos a sentar, deitar, dar a pata e buscar a bolinha, mas são “acessórios”, sabe? Não vou ficar estressada se não tivesse aprendido mais nada. Nem vou ficar me cobrando se eu não ensinar mais nada na vida para ele, ponto final. Enquanto isso, estou lá diariamente ensinando duas crianças a andar, falar, comer sozinho, usar o banheiro, escovar os dentes sozinho, tomar banho sozinho, letras, cores, formas geométricas, jogos, amarrar o sapato, respeito, regras, brincadeiras, explicando filmes. Daí virá o Ensino Fundamental, as lições de casa, as provas, as amizades, os esportes, os cursos de língua, a convivência, o vestibular, a bicicleta sem rodinhas, as frustrações. Não tem ponto final, não termina.
  • Ernesto aprendeu a não latir enlouquecidamente quando fica sozinho em casa porque, veja bem, ele fica sozinho em casa desde o dia UM por aqui. Enquanto eu ainda não posso nem descer para pegar a pizza na portaria e deixar meus filhos sozinhos no apartamento, deixo meu cachorro por horas sozinho. E ele não morre. E não sou presa. E não me sinto abandonando ninguém. Ele fica sozinho durante o dia se saio para trabalhar ou durante a noite se vamos passear sem nenhum stress. Deixo água, comida, caminha e brinquedo e ele sempre está vivo quando volto para casa.
  • E, mais: se vou viajar, entro na Internet e posso escolher qualquer pessoa para ficar com Ernesto. É claro que já elegi uma cuidadora preferida pelo DogHero e sempre deixo Ernesto com ela, mas se um dia ela não puder e eu precisar viajar, Ernesto vai conhecer alguém de uma hora para outra sem muito stress. E vai ficar bem, vai ficar feliz e ninguém vai me julgar. Só quem é mãe sabe o-que-que-é deixar os filhos com alguém, seja amigo, parente ou babá, para sair por algumas horas ou viajar sem eles. Não, não tem aplicativo para isto.
  • Ernesto come todo dia a mesma coisa em todas as refeições e acho que só troca de ração quando ficar velhinho, né? Vem pronta, é só por no prato, nem precisa esquentar, ele vai lá sozinho e come. Ele só toma água. Sim, compro uns petiscos de vez em quando e dou uns pedacinhos de legumes e frutas às vezes, mas ele viveria bem só de ração e água. Nem preciso dizer o quão trabalhoso é gerenciar a alimentação de uma criança.
  • Faço home office alguns dias na semana e fico em casa com Ernesto. Mas estou trabalhando e não dou atenção para ele. Não tenho que dar atenção, não me cobro por não dar atenção e não me sinto mal. Ele fica quieto no canto dele e eu fico no computador, aí de vez em quando trocamos um carinho e a hora de brincar/ passear fica pra depois.
  • Ernesto parou de crescer em poucos meses, então a roupinha que comprei pra ele ontem por causa da frente fria vai durar pra sempre. E ele provavelmente só vai ter essa roupinha, porque quando eu precisar lavar ele não vai se importar de ficar pelado algumas horas.
  • Quando chega a hora de dormir, não tem processo nenhum, sabe? Eu só faço os meus processos (banho, escovar dentes, pijama etc.), deito, apago e luz e pronto. Ele encontra a caminha dele e fica lá até o dia seguinte. Ele não acorda durante a noite. Se acordar, ele faz o que quer fazer acordado e dorme de novo.
  • Sim, cachorro dá despesa. Mas não se compara. Não tem escola, plano de saúde, despesas médicas que o plano não cobre, roupas, sapatos, fraldas, refeições, brinquedos, material escolar, produtos de higiene de uso diário, Internet, festinha de amigo, cinema, aula de natação, curso de inglês, mesada, dinheiro do lanche, excursão da escola, livros.

Amo o Ernesto e acho o máximo ter cachorro. Amo muito e cuido muito, não tô dizendo que não dá trabalho. Ainda que seja tudo mais simples, ele faz sujeira, come, toma banho, precisa brincar e passear, fica doente e vai no médico. Faço com o maior prazer do mundo, dou e recebo muito amor dele, mas nada disso me faz mãe. O que me faz mãe são dois espuletas de cabelos encaracolados, eles, sim, me fazem mãe.

E, no papel de mãe, me sinto culpada, sou julgada, sou oprimida, sofri assédio moral no trabalho, tenho medo de errar, tenho muitas dúvidas sobre o que fazer, me sinto sozinha, me arrependo de coisas, mudei minha carreira, tenho menos liberdade, tenho uma responsabilidade maior que qualquer outra coisa que já tive na vida e sofro. Ser mãe tem seu lado bastante difícil, já falei várias vezes, e isso tudo faz parte da maternidade e nada disso existe quando você cuida de um cachorro. Por isso, afirmo: ninguém é mãe (ou pai) de pet.

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