Veganismo e maternidade não-vegana

Primeiro vou começar dizendo que não gosto de dizer que sou vegana, porque tem muita chatice envolvendo a palavra veganx. Não só dos veganxs que advogam pela causa e começam brigas por aí, mas também dos não-veganxs que começam com piadinhas ou perguntinhas do tipo “mas e essa alça da sua mochila não é couro?” ou “mas então você não vai ao cinema já que a película XPOT de não sei o que é feita de pele de carneiro?” ou “mas que exagero não comer a batata só porque foi passada na manteiga”. Eu não uso o rótulo pelo direito de fazer minhas escolhas. Então não sou vegana. Eu sigo uma dieta plant-based, com base em plantas, sem nada de origem animal (nem peixe, nem ovos, nem queijo). Eu só uso a palavra veganx se for realmente facilitar a compreensão da pessoa com quem eu estiver precisando me comunicar para conseguir comer algo.

As minhas escolhas com relação a alimentação não têm a ver apenas com os produtos de origem animal. Eu também priorizo orgânicos quando vou ao supermercado, não consumo adoçantes químicos ou glutamato monossódico, prefiro não comer soja transgênica, evito glúten, evito açúcar refinado, não tomo refrigerantes. São várias escolhas, que não passam só pelo sofrimento animal – que para mim é uma questão importante – mas que consideram também meio ambiente e minha saúde – outras duas questões importantes.

E não são só as escolhas sobre alimentação, porque fiz várias outras escolhas na minha vida adulta: não ter carro e priorizar transporte público ou bicicleta na maior parte dos deslocamentos, usar sacolas reaproveitáveis no supermercado bem antes de começarem a cobrar pelas sacolas plásticas, usar apenas vidros para armazenar alimentos, ter uma composteira em casa, separar o lixo, usar cosméticos naturais, usar limão, vinagre e bicarbonato na limpeza da casa etc. São várias escolhas e não existe um rótulo específico para elas. São escolhas.

Parar de comer alimentos de origem animal foi difícil e foi um processo longo, de uns cinco anos. Resumindo: eu primeiro quis ser vegetariana e no começo eu morria de fome, me sentia fraca, achava estranho não comer carne no almoço. Depois consegui cortar carne vermelha e frango mas achava muito penoso não comer sushi de salmão e passei um tempo sendo ovo-lácteo-sushi-vegetariana. Aí eu percebi que não fazia sentido não comer a carne da vaca e consumir o leite, que também gera um sofrimento absurdo e tive minha primeira tentativa de veganizar, e falhei. Falhei porque dá trabalho, tem que organizar muita coisa. Quando você é vegetariana, em qualquer restaurante vai ter pratos sem carne e entradas e sobremesas para você comer. Você entra numa padaria no meio da tarde e pede um pão de queijo ou come um bolo no coffee break do workshop. Você vai na casa de qualquer pessoa e avisa que não come carne e recebe uma massa recheada com queijo e molho branco e tá tudo certo. Cortar os derivados de leite deixa a vida mais difícil. Aí durante um bom tempo eu fui “preferencialmente vegana”, ou seja, em casa cozinhava tudo só a base de plantas e, se ia num buffet, comia só as coisas veganas (arroz, feijão sem bacon, legumes e verduras), mas eu comia a pizza com queijo na casa do meu pai, a massa que o amigo cozinhava e as bolinhas de queijo na festinha infantil. Mas aí este ano eu escolhi não comer mais nada de origem animal e o meu último argumento para mim mesma foi minha saúde, ou seja, o câncer. E eu parei um dia definitivamente.

Parei definitivamente e não lamento não comer derivados do leite, não sinto falta de queijos ou sobremesas. E comprei o trabalho que essa escolha me dá. Eu ando todos os dias com uma despensa de snacks na mochila para não passar fome entre as refeições, porque lanchonetes e coffee breaks nunca são vegan friendly. Eu sou consultora e ando por aí em clientes diferentes e nunca sei direito onde vou comer, e aprendi que eu preciso saber disso antes. Tão importante como saber o endereço do cliente para eu conseguir chegar lá, é perguntar sobre opções de alimentação. Eu abro Google Maps e pesquiso, eu pergunto para o próprio cliente, eu levo marmita se precisar. Geralmente qualquer restaurante por quilo me deixa feliz, mas já levei marmitas para worklunchs e foi ótimo. Eu consulto regularmente minha nutricionista, cozinho muito em casa e já aprendi que antes de viajar preciso saber onde comer no lugar para onde estou indo também. Para minha viagem de férias em janeiro, já abri o mapa da cidade para onde vou e marquei 200 opções de restaurantes para ser feliz e não brigar com o namorado porque fico entrando, pedindo cardápio e saindo de restaurante que não é flexível comigo. Mas foi uma escolha e estou feliz com ela, bem feliz.

E estou repetindo a palavra escolha por dois motivos, a saber:

Motivo 1:

Eu acho que cada um faz o que quer. Eu realmente acho isso. Então eu como o que eu quero e respeito as pessoas que não comem glúten, que não comem carbo, que não comem salada ou que fazem qualquer tipo de dieta, ou que não restrinjam nada e comam qualquer coisa. Cada um faz o que quer. Se eu acho que o mundo seria melhor se todas as pessoas fossem veganas? Faz parte da minha escolha achar que ser vegan é melhor para o planeta, sim, mas eu preferia que antes as pessoas parassem de falsificar carteirinha de estudante e cometer pequenas corrupções do dia a dia.

Motivo 2:

É aqui que entra a maternidade não-vegana. Eu não acho que meus filhos TÊM QUE ser veganos, eu acho que eles têm que escolher. Eu sou mãe deles e isso não me faz dona deles nem das decisões deles. Eu mando no cachorro, isso eu mando mesmo, então Ernesto come ração vegetariana porque eu escolho isso para ele, já que sou eu que pago e sou que compro, então, foi mal Ernesto, mas vai ser do meu jeito. Mas eu não mando nos meus filhos. Eu tenho um papel de criar, de educar, de mostrar o mundo, de discutir as minhas escolhas e as escolhas dos outros. Eu quero, sim, que eles tenham informação e argumentos para que possam escolher bem. Mas eu não restrinjo o que eles comem. Eu cozinho refeições em casa sem nada de origem animal porque eu vou comer junto com eles, mas eles comem o docinho que alguém nos deu e que tem leite, eles vão em festinha e comem o que quiserem, eles se alimentam como acham melhor na escola ou na casa do pai. Eu prefiro que eles não tomem refrigerante nem fiquem se entupindo de balas e pirulitos cheios de corantes e adoçantes a achar ruim se eles comerem um bife por aí.

Isso tudo não vale só para alimentação. Recentemente Isaac comentou com uma amiga uma conversa que tivemos com o tema “FOI GOLPE SIM”. Essa amiga, com uma opinião política diferente da minha, disse para ele que não iria falar sobre isso com ele, porque pensava diferente da mamãe. E eu encorajei o contrário. Eu disse que achava mais produtivo ele entender que é questão de opinião, que as pessoas interpretam as coisas de forma diferente e que temos que respeitar e também escolher uma posição. Então tudo bem alguém com opinião política diferente falar sobre isso com meu filho.

E dentro do motivo 2 está o fato de eu não ser assim tão altruísta. Sabe todo o trabalho que eu mencionei acima, de carregar lanchinhos e marmita para a festinha? Eu contrato os lanches e refeições da própria escola e acho o máximo quando alguém nos convida para jantar e não tenho que cozinhar para eles. Eu não vou comprar esse trabalho todos por eles de forma voluntária, só vou comprar esse trampo se eles escolherem, por vontade própria, não comer mais nada de origem animal. Até isso acontecer, se isso acontecer, eu acho mais fácil que eles comam o sanduíche com queijo que a escola oferece no lanche que ter que preparar todos os dias duas lancheiras para os dois. Não sou assim tão legal. 😊

E eu comprei panetone vegano e não pretendo dividir com ninguém. Tem um Bauducco aqui para quem – filhos e/ ou namorado – reclamar que não ofereço panetone.

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Para o ano que vem chegando

Querida Ruri,

2017 vai começar em poucos dias e tem algumas coisas que eu queria te dizer sobre este novo ano.

Você vai começar o ano muito bem. Vai entrar em 2017 ao final de uma semana de férias em um lugar lindo, ao lado de uma amiga querida que está nessa jornada há mais de 15 anos, e vai ter um jantar incrível, depois irá para uma festa animada e vai começar o ano apaixonada (essa paixonite vai durar poucos dias, mas vai te fazer muito bem, então não fuja).

Você não costuma fazer resoluções de ano novo, mas este ano você vai fazer uma única resolução, a mais acertada dessa vida: deixar para trás tudo o que fez mal em 2016. Você só vai levar para 2017 o que te faz bem. E cortar relações com coisas que incomodam, que fazem mal, que entristecem, vai ser, sim, a melhor coisa do ano. Nem olhe para trás. Largue tudo que fez mal em 2016.

Você vai encontrar muito amor em 2017. Vai encontrar um relacionamento incrível, que junta amor, respeito, companheirismo e liberdade. Vai viver perto dos grandes amigos como nunca conseguiu viver antes, com muitas viagens, muitos shows, muitos jantares, muitos abraços, e tudo isso vai ser ainda melhor que na época da faculdade, quando você conheceu a maioria deles. Você vai olhar muitas vezes para os amigos que conheceu aos 10 anos de idade lá na escola e agradecer por eles ainda estarem ali. Você vai dedicar tempo para cuidar da sua vó e vai descobrir a companhia mais fofinha do mundo para ir ao ballet. Não deixe de convidá-la e de levá-la em tudo o que puder.

Não faça tanta escova no cabelo, não. Aplique todas as técnicas de no poo e co wash que você pesquisar para Ruth no seu próprio cabelo e deixe-o armar e ondular também. Ficará bem melhor.

Conserte tudo o que quebrar na sua casa rápido. Não deixe acumular uma lista de pendências domésticas para resolver, porque a preguiça aumenta, dá desânimo e custa dinheiro do mesmo jeito. E compre cabides novos para você, vai te fazer feliz ver o armário arrumadinho.

Depois de anos querendo, tentando e falhando em ser vegetariana e/ ou vegana, em 2017 isso vai dar certo. E você vai se sentir orgulhosa demais quando estiver há mais de seis meses sem comer nada de origem animal, porque isso faz bem para o corpo, para o planeta e tem também o gostinho de ser persistente e conseguir! Não dá para ter certeza, mas acho que há grandes chances de você conseguir seguir uma dieta plant based para sempre, e vai ser ótimo. Então não tenha preguiça: cozinhe muito esse ano, prepare marmitas, leve lanchinhos na mochila, faça um prato de arroz com feijão antes da festinha onde só vai ter bolinha de queijo para comer. Você vai ter muito orgulho de si mesma por isso.

Você também vai querer cuidar do corpo como nunca, vai fazer a mountain bike ser prioridade, mas também vai praticar muita corrida, natação, yoga e musculação e vai se afogar em tanta endorfina. Faça isso, vai ser bom. Mas não se frustre quando perceber que os planos de correr uma meia maratona em dezembro e de fazer um short triathlon em outubro vão furar e você vai perder todo o dinheiro das inscrições. Não fique triste. O câncer vai vir de novo este ano, mas você vai aprender tanta coisa com isso, que meia dúzia de camisetas não usadas não vão ser nada (porque você vai lá buscar todos os kits mesmo sem fazer as provas, tá?).

O câncer vai te mostrar como foi bom investir tempo em leituras, cursos e práticas de budismo moderno e meditação, porque essa coisa toda de preparar a mente, de meditar uma boa intenção, de pensar nos ensinamentos etc. etc. etc., vai te fazer colocar o câncer no lugar que ele já devia ter ocupado ano passado: um detalhe da vida que você tem para resolver. Você não vai chorar, não vai se desesperar, não vai ficar em posição fetal no sofá, nada disso. Você vai tirar uma coragem não sei de onde para uma cirurgia gigante, vai trabalhar até a véspera, vai descer tranquila para o centro cirúrgico, vai ser paciente com a recuperação, e vai seguir em frente de uma forma tão tranquila que muita gente nem vai perceber o que estava acontecendo. No meio da recuperação, você vai comprar um coletor menstrual, e isso vai ilustrar bem o que estou falando. Porque você vai estar preocupada em como colocar, como tirar, como não deixar vazar, como não machucar, e vai deixar em segundo plano essa história de cicatrizes, pontos, curativos e movimentos limitados. Câncer é só um detalhe. Então não deixe de comprar o coletor.

O câncer em 2016 foi fácil. Este ano vai ser mais difícil, mas você vai se sair bem. O período de recuperação vai ser ótimo porque vai te colocar em contato com muitas coisas diferentes. A primeira delas vai ser a necessidade de priorizar e respeitar seu corpo. Você vai ouvi-lo quando precisar dormir mais ou ficar mais quietinha no sofá, vai comer cada vez melhor, vai ter muita paciência quando o médico dizer que você já pode ir para esteira, mas você perceber que ainda não está legal para tentar voltar a correr. Você vai deixar de beber álcool mesmo estando liberada para isso, porque vai ouvir o que seu corpo te diz. Você não vai ter vergonha de dizer para o cliente que não consegue levantar o braço para usar o flip-chart, de pedir ajuda para as pessoas te servirem o café da garrafa térmica muito dura, nem de falar com as pessoas sobre a cirurgia assustadora que você vai fazer. Porque tudo isso vai ser uma forma de respeitar seu corpo e você vai se sentir muito bem com isso.

A segunda grande coisa que vai acontecer durante o período de recuperação é que você vai enfiar a cara em livros, que é algo que você ama, vai deliciar com Freud e vai fazer uma fila linda de leituras que incluirá Hannah Arendt e Simone de Beauvoir. O doutorado vai começar a tornar uma forma mais legal nessa época também. Não deixe o doutorado de lado durante o ano, porque você vai gostar muito dele até dezembro.

Pedale muito no primeiro semestre, porque no segundo semestre as sapatilhas vão ficar bem guardadinhas. E curta muito a piscina até operar, porque ela também vai ficar on hold. Se em 2016 você comemorou a recuperação da cirurgia com uma prova de 10k e algumas trilhas de mountain bike depois de poucas semanas, agora os marcos serão diferentes. Você vai ficar muito feliz quando conseguir ficar em pé para dar um treinamento ou workshop de dia inteiro. Você vai comemorar a primeira vez que levantar os braços e quase chorar de emoção quando conseguir deitar de bruços por três minutinhos. E vai se sentir Magaiver quando fizer uma viagem a trabalho sozinha envolvendo voo, mochila pesada com computador no bagageiro do avião e se trocar sozinha num quarto de hotel sem precisar de ajuda para abaixar o zíper do vestido que fica nas costas. Vai ser um exercício de paciência muito grande para quem estava acostumada a ir para a academia todo dia e escalar montanhas nos feriados. Vai lá e arrasa no pilates, que aos pouquinhos o corpo vai voltando ao normal. E, falando em feriado (e férias), viaje em todos eles enquanto puder, viaje muito, para se sentir energizada quando estiver lidando com baixa imunidade, indisposição e quando a coisa mais radical em um feriado for ir ao cinema.

Mas as crianças, mesmo com uma mãe com câncer e longas temporadas meio longe, terão um ano delicioso. Você vai ver que a escolha da nova escola desta vez foi acertada e eles vão se sair muito bem. Vão terminar o ano lendo e escrevendo, ganhando medalhas de ouro de judô, felizes e tranquilos. A guarda compartilhada que vocês definiram há poucos meses vai ser também um outro gol do ano. Dividir o tempo, dividir as responsabilidades e – principalmente – mostrar para as crianças que mamãe e papai são amigos, que conversam, que trocam as informações, fará bem para o coraçãozinho deles. Invista no relacionamento com o pai deles, esse é um relacionamento para a vida toda que só faz bem para todo mundo quando está em harmonia. Cuida bem disso em 2017.

O ano terminará com um mês de dezembro bem caótico, mas cheio de problemas bons, que é o desafio de conciliar três projetos de consultoria, um treinamento, duas pesquisas, um doutorado, um artigo para congresso e as férias escolares. Mas você vai se olhar no espelho e se ver feliz, e se achar linda, e se sentir realizada com tudo o que aconteceu em 2017.

Então diga adeus a 2016 e tenha um lindo ano novo! Feliz 2017, 2017 feliz!

 

O trampo, o amor e a gestão da p$*%&# toda

Essa semana um amigo me perguntou se alguma vez eu tinha me arrependido de ser mãe, se eu pensava em como seria minha vida sem Isaac e Ruth.

Não dá para pensar nisso.

Filhx não é só o trabalho envolvido, a grana, a gestão de logística, as irritações com bagunças e aquele 1 quilo de feijão que você cozinha achando que vai durar o mês e acaba em quatro dias.

Filhx muda a gente. Transforma. Eu morri e renasci no dia em que eles chegaram, quando eu me tornei mãe. A maternidade muda a essência, os valores, a forma de encarar problemas e todas as prioridades. Não é questão de ser mais feliz como mãe, não é questão de encontrar “o real sentido da vida”, se é que isso existe. É a transformação. Eu me lembro como eu era, eu lembro da minha vida aos 31, quando trouxe os dois monstros para casa, mas não consigo projetar aquela vida hoje, cinco anos depois. É diferente de pensar em dar undo na adoção do cachorro. Amo o Ernesto, vou cuidar dele até o fim da melhor forma possível, mas ele não mudou nada em mim. Consigo imaginar direitinho como seria a vida sem ele. Mas não dá para pensar em como eu seria hoje sem Isaac e Ruth, porque eu não faço a mínima ideia.

A única ideia que faço é que a vida seria mais fácil, provavelmente. Menos boletos, menos feijão, menos preocupações talvez.

Recentemente dois fatos me causaram uma pontinha de inveja da minha melhor amiga: 1) ela foi avisada sobre um treinamento que faria em Londres umas duas semanas antes e teve duas únicas preocupações, que foram arrumar a mala e vender o ingresso para o show do Bon Jovi que já tínhamos comprado, 2) ela fez um treinamento corporativo de terça a quinta das 18h às 22h. Eu teria que envolver um time gigante para conseguir estes cinco dias em Londres e três dias em treinamentos noturnos.

Quando mudei toda minha carreira, uma das questões era justamente essa coordenação de logística, porque trabalhar com logística não era uma ambição na minha vida, mas fui me tornando uma gerente de logística exemplar. Era tanta coisa para gerenciar, minha gente, tanta coisa. Tinha perua, babá, escola, terapia, natação, supermercado, boletos, médicos, roupas, uniforme, lição de casa, horário de dormir e de acordar, muito mais coisa que eu gostaria de ter que cuidar. Aí eu mudei tudo.

Mas sou freelancer e os boletos insistem em chegar todos os meses, então – embora eu esteja bem mais feliz – não é que consegui uma vida mais fácil, não. Estou indo para a quarta viagem a trabalho este ano e vou contar como foi.

Na primeira, consegui organizar a agenda e ir para o Nordeste nos dias em que as crianças já iriam ficar com o pai e foi tudo lindo. Na segunda, para o interior de São Paulo, pedi uma ajuda para minha madrinha, que os pegou na escola, dormiu com eles na casa dela e devolveu na escola no dia seguinte. Na terceira, já tive mais tilt, porque só consegui um voo que descia em São Paulo umas 22h e a escola fecha às 19h, então eu tinha um problema. Pedi para meu pai, achando que ele teria suporte da minha madrasta para me cobrir essas três horas. Mas minha madrasta tinha um outro compromisso, meu pai topou pegar na escola e levar para a casa dele, mas me pediu ajuda com a comida deles, porque ele não fazia menor ideia do que dar, de como dar, de onde comprar alguma coisa para crianças jantarem. E aí eu pedi para minha mãe (porque eu já estava lá em Salvador) comprar uma marmita e levar até a escola para que meu pai pegasse crianças e marmitas e ficasse com elas até eu voltar de viagem. Deu tudo certo também, com um pouco mais de emoção.

Agora vou passar dois diazinhos em Belorizonte, pertinho. Não consegui usar os dias em que eles estarão com o pai, então comecei a organizar. Primeiro, avisei o cliente que não daria para pegar o voo das 6h30, porque a escola abre às 7h, então não é compatível, vou ter que ir às 8h. Aí resolvi que pela primeira vez na vida vou contratar uma babá de forma mais radical. Já tive babás no passado, mas não com tantas atividades envolvidas de uma vez só: a babá vai buscar na escola, trazer para minha casa, dar jantar, dar o banho, dormir com eles aqui e levar para a escola no dia seguinte. Eu nunca deixei os dois sozinhos em casa com outra pessoa por tanto tempo, com tantas coisas envolvidas e estou apreensiva. Mas preciso testar para saber como é que é. No dia seguinte, minha mãe os pegará na escola, virá para minha casa e eu chego do aeroporto para liberá-la. Aí vou precisar deixar pronta toda a comida para todos esses dias porque não quero que a babá e minha mãe ainda tenham que cozinhar para eles. E resolvi também levar o cachorro para a doghero porque não quero que elas tenham que limpar xixi e cocô de cachorro e alimentá-lo além de tudo. E vou ficar acompanhando o percurso escola-casa e casa-escola porque se precisar vou chamar um taxi para elas. Aí eu estava comentando com minha irmã o tanto de gente que tive que envolver para poder dormir uma noite fora de casa a trabalho e ela me respondeu:

– E pensa que você faz tudo isso sozinha todos os dias e ainda trabalha fora.

Aí eu percebi que não sou uma excelente gerente de logística. Eu sou Magaiver. Essa transformação toda pela qual eu passei foi de pessoa comum para um super-herói e acho que é por isso que não dá para se arrepender de ter tido filhos ou ficar imaginando como seria sem eles. Como é que eu vou querer deixar de ser Jessica Jones e perder meus super poderes? Não dá.

Diálogos improváveis

Ruth:

– Mãe, faz couve no jantar?

– Ixi, Ruth, não tem couve.

– Como não tem couve?!? Tem que ter couve todo dia! Vamos comprar mais couve!

 

– Amanhã você me acorda mais cedo?

– Por que você quer acordar mais cedo?

– Quero ir mais cedo para a escola, hoje você me levou muito tarde.

 

– Mãe, eu não quero que você morra.

– Estou tentando não morrer agora para morrer só quando eu for velhinha.

– Então você tem que comer sempre saudável. Eu sempre vou comer saudável também para poder cuidar de você.

 

Isaac:

– Mãe, amanhã nós vamos ficar em casa?

– Vamos.

– Então, depois do café da manhã, você pode jogar duas partidas de xadrez comigo?

Dia de cão (ou dia de mãe)

Hoje eu acordei às 5h da manhã. Eu tinha um compromisso cedo, mas não tão cedo assim, mas esse é o horário que me deixa tranquila para sair de casa tendo completado todos os processos. Eu não precisaria acordar tão cedo, mas a partir das 6h sempre corro o risco de cruzar com a Ruth no corredor, e uma criança acordada faz qualquer coisa que a gente queira fazer demorar mais. E, sempre que alguma coisa demora mais de manhã, quem se ferra sou, porque em geral quando temos que nos apressar eu fico sem café da manhã. E aí saio na rua e não consigo comer nada até o almoço, porque em qualquer lanchonete qualquer coisa que sirva de café da manhã tem ovos, leite ou presunto e eu não como nada disso. Então eu acordei às 5h para conseguir tomar banho, me arrumar e tomar café da manhã sozinha, em silêncio e tranquilamente antes de qualquer criança aparecer na sala.

Aí eu saí cedão na rua com duas crianças, levei a pé até a escola, entrei no metrô e segui para um seminário. Passei a manhã no auditório, almocei com os colegas, dei uma fugida para apresentar uma proposta de trabalho para um cliente, voltei para o seminário. Quase no finalzinho, os culegas começaram a combinar um jantar de confraternização. Hoje. Eu nem sei o quanto eu queria ir neste jantar, mas eu não lido bem com a renúncia. Eu não lido bem com esse relacionamento desigual, onde os filhos podem ficar doentes sem planejamento e ferrar toda minha agenda, mas eu não posso decidir assim de última hora jantar com um pessoal e desmarcar meu compromisso de ir buscar na escola. Essa falta de liberdade é um perrengue muito grande na maternidade, sempre achei.

Mas sem outra alternativa, fiz todo o caminho de volta para pegá-los na escola. Super tarde, não deu tempo de passar na farmácia sozinha antes de a escola fechar, então eu peguei os dois na escola e fui com eles na farmácia. Era para ser cinco minutinhos, mas o sistema travou, o remédio é controlado e precisava do visto do farmacêutico, tudo começou a dar errado e ficamos trinta minutos dentro da farmácia. Sim, tinha que ser hoje, porque já não tinha mais nenhum comprimido para amanhã. Trinta minutos em uma farmácia com duas crianças e eles encontraram um amiguinho da escola lá dentro. Eu só queria que eles ficassem parados e quietos ao meu lado enquanto eu esperava o remédio desenroscar, mas não. Claro que não. Rolou pega-pega, esconde-esconde, polícia e ladrão, várias gritarias e corridinhas dentro da loja.

Eu teria ficado irritada se as crianças não fossem minhas. Como eram minhas, eu fiquei duas vezes mais irritada, porque também me senti uma incompetente por não conseguir fazê-las parar de gritar e de correr.

Aí entrei em casa e mano, tô pensando em mudar para um hotel. Porque tinha xixi e cocô de cachorro, tinha que dar comida pro cachorro, tinha que fazer jantar, tinha que fazer criança entrar no banho, depois fazer criança sair do banho (duas vezes), fazer criança escovar os dentes, colocar na cama, arrumar roupa, mochila, louça, caraio.

E a cereja do bolo foi Isaac querendo me surpreender achando que eu estava sobrecarregada e ir arrumar o quarto dele sozinho. Arrumação, I mean, ARRUMAÇÃO. Ele tirou todas os livros da prateleira para rearrumar seguindo uma classificação nova em plena segunda-feira à noite. Em plena segunda-feira à noite 800 livros na cama do menino, e eu quase o coloquei para dormir no chão mesmo.

Que dia, minhadeusadocél. que dia.

 

Verdades e mentiras

Eles tinham chegado da escola e foram lavar as mãos. Quando entrei no banheiro para dar aquela conferida, encontrei o sabonete meio despedaçado. Ele já estava rachando um pouco e alguém tinha enfiado os dedinhos e arrancado vários pedacinhos. Não era grave, não era bronca, sermão, nem nada. Eu só perguntei quem tinha feito aquilo.

Mas não tinha sido nenhum deles, né? Eu ouvi de tudo. “Será que não estava assim antes?”, “Foi o Ernesto!”, “Não fui eu”, “Foi ele!”. O Isaac chorava ofendido e alegava que só porque ele é bagunceiro de vez em quando eu já o acusava de qualquer coisa; a Ruth me dizia que ela jamais faria uma coisa dessas, imagina, ela, princesa do bom comportamento na escola que só arranca suspiros da professora.

Eu me senti uma palhaça. Porque alguém estava mentindo para mim, eu não queria ficar acusando ninguém, porque realmente poderia ter sido qualquer um deles, mas me senti uma palhaça por estar ali na frente de um mentiroso cara-de-pau. E o sabonete em si nem era um problema, eu tava cagando para o sabonete. Eu estava inconformada porque uma criança estava mentindo para mim na cara dura e eu não sabia dizer qual criança era a mentirosa.

Aí uma hora eu parti pro drama e pra chantagem emocional, porque eu não tinha outras armas. Eu falei para eles que estava muito abalada por ter um filho mentiroso, que mentia tão bem que eu nem conseguia desconfiar dele. E que isso era um problema muito grave para mim, porque isso significava que eu não poderia confiar em nenhum dos meus dois filhos, porque qualquer um deles poderia me enganar. Que eu ia ter que perder a confiança e virar uma mãe desconfiada de tudo, e que isso ia ser muito ruim para mim, que eu ia viver triste, e que nossa família ia ser uma família sem confiança.

Isso, esse drama mesmo.

Aí mandei cada um para o quarto para pensar na vida e encontro a Ruth chorando no quarto dela. Bingo! “Ai mamãe desculpa eu fiquei com medo de tomar bronca mas eu não devia ter te enganado eu nunca mais vou te enganar porque eu te amo e quero que você confie em mim”. Nos abraçamos e nos beijamos e vivemos felizes para sempre, numa relação de muita confiança e verdades.

Até o dia seguinte, quando entrei no banheiro e vi que alguém tinha feito cocô e esquecido de dar a descarga e perguntei quem tinha sido. E eles gritaram ao mesmo tempo:

– FUI EU, FUI EU, MAMÃE!

Essa é a hora que eu invejo quem crê em deus e tem para quem rezar e pedir forças para suportar este desafio. Taqueopariu.

Saco de pancada

O menino acordou atacado. Quando fui chamá-lo, ele não deu “bom dia”. Primeiro deu uma resmungada sobre querer dormir mais, depois pulou da cama na direção da estante de livros porque queria levar um livro para a escola.

Sim, esse interesse por livros é fofinho. Sim, a escola permite que eles levem livros e revistas para que as tias leiam para eles nos horários de recreação. Mas nós temos regras em casa: 1) não pode levar livros muito novos (porque eventualmente o livro volta destruído), 2) não pode levar livros de estimação (tenho meus livros infantis guardados há mais de 30 anos e eles não saem daqui nem a pau, 3) não pode ser muito grande (porque não cabe na mochila) e 4) nem muito pesado (porque vamos e voltamos da escola a pé). Dito isso, eu selecionei algumas opções que se enquadram nas regras e deixei ele escolher.

Mas ele queria brigar.

Ele queria aquele velho mas pesado, aquele grande mas levinho, aquele outro novo mas que ele ia cuidar bem. Isaac, eu já tinha te dado as opções e você ia ter que escolher entre aquelas.

“Especialistas” em comportamento infantil vão dizer “você devia ter dito que não ia levar nenhum e pronto” ou “você devia ter deixado ele levar qualquer um”. Mas a criança tava a fim de brigar, ia sair treta de qualquer jeito. Ele achou ruim as opções que eu dei, teria achado tão ruim quanto não levar nada, e teria demorado séculos para escolher alguma coisa se eu deixasse livre (Isaac não é lá muito decidido e geralmente tem treta porque ele demora pra escolher, não aceita sugestões e depois fica trocando o brinquedo antes de sair de casa e é um saco).

Enfim, era dia de tetra no matter what. Quando ele percebeu que não ia ganhar e que teria que escolher entre as opções que eu dei, ele partiu pra agressão.

Mano, como dá raiva ver a sua criança te xingando e falando palavrões. “PUTAQUEOPARIU VOCÊ É UMA IDIOTA” e “EU NÃO VOU TOMAR A PORRA DO CAFÉ DA MANHÔ foram algumas dessas agressões. Dele, só pra deixar claro.

O que mais odeio na maternidade é sentir raiva. Todo o resto é gerenciável (as contas pra pagar, o trabalho, as preocupações, a privação de liberdade). Mas sentir raiva de criança é enlouquecedor. Porque é assim ó: 1) dá raiva mesmo e 2) eu me sinto muito imatura já que sou o adulto da relação e deveria me controlar e nem sempre consigo e o sentimento que vem é raiva.

Não tô falando de irritação ou cansaço por coisas do dia a dia, tô falando daquela raiva que dá e que te faz pensar se existe uma forma legal de jogar fora e nunca mais ter que ver a criatura.

Mas a gente tem que ser madura.

Se fosse um namorado fazendo o que Isaac fez ontem, eu teria terminado ali mesmo para nunca mais voltar, mas é meu filho e não tenho essa opção (infelizmente).

Tudo isso às 6h30 da manhã, mano.

Aí vem a pior parte: ele tinha que ir para a escola. Não só ir para escola, ele tinha que passar o dia lá e ficar bem na escola. Porque se ele segue o nervosismo, a irritação e as agressões na escola, a coordenadora iria me ligar e estragar ainda mais meu dia – isso se não me pedissem para buscar a criatura que eu já não queria mais ver naquela hora. Eu ia me ferrar mais ainda. Tudo o que eu queria era jogar a criança portão adentro da escola e correr dali. Queria aquelas horas longe do ser para curar minha raiva e meus pensamentos de como sair daquela relação. Eu sinceramente não queria desculpá-lo, eu não queria lidar com aquilo, queria só que ele sumisse.

Mas eu tive que passar por cima de tudo o que eu estava sentindo e, quando ele acalmou e pediu desculpas, eu tive que fingir que tava tudo bem, que eu entendia e que desculpava, apenas para que o ser entrasse na escola minimamente recomposto e me deixasse em paz.

Eu sei bem que ele tem 6 e eu tenho 36, e que é difícil para ele controlar emoções e frustrações, mas ontem eu me senti o mais puro saco de pancadas. E precisar desculpar forçadamente apenas para conseguir ficar longe dele foi muito difícil, porque fez a minha frustração com a situação aumentar.

Nossa, mano, como é difícil sentir raiva.

Pensamentos sobre a morte

Eu achava que eu não tinha medo de morrer.

Na verdade, ainda acho.

Morrer é natural, é um fato, é o destino de todo mundo, certo?

Só que a morte fica mais real quando a gente tem câncer duas vezes. Eu me sentia um pouco imortal, eu sentia que devia me preocupar com previdência para pagar minhas contas na velhice, mas de repente vem algo que sussurra no meu ouvido “talvez você morra antes de ficar velhinha”.

E eu achava que não ligava para a morte, porque ela é um fato e porque eu tive uma vida boa até agora. Fiz muita coisa, vivi muita coisa, fui muito feliz, então tinha uma ilusão que já poderia morrer satisfeita.

Mas não.

Tem duas coisas coisas que me matam um pouquinho cada vez que penso sobre a morte.

A primeira delas é que catso de mãe sou eu que pode morrer antes de ficar velhinha e que pode não estar aqui para o Isaac e para a Ruth. Gente, como me sinto incompetente por isso. Eu me sinto na obrigação de estar aqui inteira para finalizar este projeto que é estar ao lado deles até o começo da vida adulta, e aí ficam aparecendo coisas que podem me tirar do projeto antes da hora. Not fair, nem comigo, nem com eles.

E a segunda, que pode até ser egoísta, é a dor que eu sinto só de pensar na possibilidade de não vê-los crescer.  Eu não consigo pensar em perder a vida deles. Meus filhos são crianças tão bacanas, e sei que serão adolescentes ótimos e adultos do bem, e eu quero estar aqui para conhecê-los em todas essas fases.

Eu não estou morrendo, pelo contrário, tô bem viva. E tô muito bem. O assunto pode parecer mórbido, mas não é assim que me sinto depois da semana linda que tive. Foi só esse pensamento que me veio que se tem uma coisa pela qual eu quero viver é a minha maternidade. Existe uma única coisa que me faz pensar que não estou pronta para morrer e esta coisa é minha maternidade. Então, Sr. Tumores, parem de me fazer pensar sobre a morte, por favor. Ainda não terminei o que estou fazendo nessa vida.

 

 

 

Docinho (mas não)

Meus filhos estavam com o pai há vários dias e liguei para falar com eles. Falei com a Ruth, depois com Isaac e desliguei. Aí vem mensagem do pai:

– Ué, você não vai falar com o Isaac?

– Eu não falei com o Isaac?

A Ruth engoliu o capeta quando nasceu, não é possível. Quando terminamos a conversa, ela disse “beijo mamãe tô com saudades vou passar pro Isaac” e voltou com “oi mamãe é o Isaac você tá bem eu tô bonzinho na escola”. E repetimos a conversa toda. E ela devolveu o telefone para o pai dizendo “papai, enganei a mamãe”.

Affe.

(e, não, não dá para reconhecer as vozes dos dois ao telefone ainda. ou eu não tenho esse skill ainda de reconhecer a voz dos meus próprios filhos)

Formulários

Eu estava me preparando para um exame desses de mulher, preenchendo aqueles formulários com data da última menstruação, doenças anteriores etc. e aí chego nas perguntas: “Tem filhos?” Quantos?”.

Perguntinha mal formulada, né? Tenho aqui Isaac e Ruth que não me deixam esquecer que tenho filhos, DOIS FILHOS, então eu tenho obrigação de responder “sim, 2”. Mas isso não responde nem um pouco o que o laboratório precisa saber, e teria sido bem melhor perguntar o número de gestações, de partos, de abortos. Algo mais específico.

Porque não são só as mães adotantes. Tem também as mulheres que entregaram os filhos para a adoção, que não têm o filho, mas que precisariam falar da gravidez e parto antes de um exame. E tem as mães cujos filhos faleceram, que não sei se responderiam que têm ou que não têm.

De qualquer forma, a pergunta estava ruim e coloquei uma observação ao lado: “adotivos”.

Aí, juro:

– Moça, por favor, esses filhos adotivos são humanos ou cachorros?

Taqueopariu.

Ernesto, desculpa não ter pego o formulário de volta, riscado o 2 e colocado um 3. Porque se são humanos, cachorros ou chinchilas, pouco importa para quem devia ter me perguntado sobre gestações, abortos e partos. Taqueopariu, viu?